quinta-feira, outubro 04, 2018

Kintsugi





Quando andei na faculdade tive um colega que tinha tido paralisia cerebral. Nunca antes tinha visto uma pessoa assim. Andava muito mal, controlava os movimentos com enorme dificuldade e quase não se percebia o que dizia. Era tão inteligente e bem disposto como todos os outros. Presumo que se sentisse um bocado diminuído mas, se se sentia, isso não transparecia. Custava-me um bocado falar com ele pois não queria mostrar que mal o percebia mas também não queria que ele percebesse que me inibia de lhe pedir para repetir. Contudo, quando vencia essa minha inibição, gostava imenso de conversar com ele.


Pouco depois, quando dei aulas no secundário e os meus alunos eram pouco mais novos que eu, deparei-me com outra situação complicada. Tinha uma aluna que sofria de epilepsia. Mas sofria muito. Era tão alta como eu mas mais forte que eu. Volta e meia começava a ficar estranha e depois caía, ficava a ter espasmos no chão. Eu, como professora, sentia que tinha que manter a calma na sala e que devia prestar-lhe assistência. Uma vez urinou-se toda. A mãe dela tinha-me ensinado a lidar com a situação. Mas a verdade é que eu, mesmo sem querer, estava sempre a vigiá-la com medo que a crise aparecesse. O que aquela miúda devia sofrer sabendo que, a toda a hora, lhe podia dar uma daquelas valentes macacoas em que ficava a estrebuchar no chão, a espumar, quase assustadora, descomposta... E todos os outros a encaravam como a colega estranha e ela também se sentia assim. Poucos amigos tinha. Notoriamente sentia-se diminuída face aos outros.

Num prédio perto do meu mora um casal com uma filha que também tem crises diabólicas. Já uma vez falei da senhora. A pena que sinto dela não sei exprimir em palavras. Nunca vi a senhora a falar com o marido ou com a filha. Tem um ar triste, consumido, como se qualquer vestígio de alegria tivesse desaparecido, por completo, da sua vida. A filha, que já deve andar pelos vinte anos, anda mal e parece mal controlar os movimentos do corpo. Nunca a ouvi falar. Mas o pior é quando tem crises na rua. Fica caída, a mãe a abrir-lhe a boca e a pôr-lhe uma coisa para lhe controlar a língua, a tentar segurar-lhe as pernas, a amparar-lhe a cabeça. Mas a rapariga não reage, é como se estivesse possuída. Numa das vezes perguntei à senhora se precisava de ajuda. Disse-me que não, que aquilo já passava. E pareceu que não queria que eu estivesse por perto. Respeitei. Afastei-me. Mas imagino o que é a vida daquela senhora ou, melhor, daquele casal.  A mãe tenta vesti-la com roupa bonita e a rapariga até é bonita. Mas, quando a vejo, é no problema que ali está que penso e não na sua beleza. Sem querer, ficamos formatados para só ver o que corre mal.


Nenhum dos casos de que falei será o caso das mulheres que aqui mostro. As mulheres que participam nesta campanha têm doenças raras, deficiências diversas, membros amputados, fundas cicatrizes. Mas porque haverão de se sentir diminuídas? O preconceito é que nos faz não ver a beleza  -- porque beleza, na verdade, não é sinónimo de simetria, de perfeição.

Usando a técnica Kintsugi, que consiste em tornar belos os defeitos físicos, não os disfarçando mas  salientando a sua beleza, um conjunto de mulheres foi fotografada e filmada por Murat Ozkasim para a campanha #EveryBodyBeautiful, idealizada por Zoe Proctor e Laura Johnson.


Quando uma bela mulher sente que o prazer de um grande amor já está fora do seu radar porque envelheceu ou quando, por algum motivo, se acha imperfeita ou pouco atraente o que se passa é que está também a ser preconceituosa. Até ao lavar dos cestos é vindima -- ou seja, todos, sejam homens ou mulheres, novos ou velhos, saudáveis ou doentes, perfeitos ou imperfeitos, esculturais ou defeituosos devem estar prontos para amar e ser amados, para festejar a vida, para partir à descoberta. 

Não há nada mais subjectivo do que a beleza. 

No outro dia, estávamos a passear e vimos uma mulher que me pareceu verdadeiramente feia, mas mesmo muito feia. Ia ao encontro de um homem que, a meus olhos, era igualmente um desastre. Pois se os vissem... caíram nos braços um do outro, um abraço contagiante, e ali mesmo, no meio da rua, beijaram-se na boca, apaixonados como há muito tempo não via ninguém. Certamente achavam-se belos. Ou não, mas a beleza ou a ausência dela, não era factor que interferisse naquele afecto tão intenso. Fiquei encantada. Voltei-me para trás com vontade de fotografar. O meu marido puxou-me pelo braço: 'Livra-te' e eu obedeci, não fotografei e segui em frente. Mas fiquei com pena pois era um daqueles instantes maravilhosos, de grande amor.


Mas mesmo que não haja outro ou que a falta de um outro não se faça pesar, há a auto-estima. E não há nada que torne uma pessoa mais insegura do que a falta de auto-estima. O amor próprio é fundamental. Veja-se o sorriso feliz destas mulheres. Que bonito é o seu sorriso e que bonitas elas são.


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