quarta-feira, setembro 12, 2018

Esta doce forma de existir





Estou de férias, a meio da terceira semana. Tanto tenho feito que parece que estou de férias há séculos e temo que, quando regressar, já não saiba conduzir ou trabalhar nem seja capaz de estar confinada a espaços onde as janelas não abrem e onde todo o santo dia respiro ar condicionado e atravesso situações que parecem querer distanciar-se de mim. 


Estes dias têm sido deliciosamente calmos, ociosos, banhados a luz dourada. Relembro as brincadeiras dos meus meninos, os seus abracinhos carinhosos, as suas palavras inocentes e felizes. Caminho por entre os pinheiros, os cedros, as aroeiras, o alecrim, o alfazema e as madressilvas, apanho figos e devoro-os, doces, carnudos, irresistíveis, deito-me ao sol, leio, durmo. Está calor. Ando, quase todo o dia, nua. 




Ao fim do dia levanta-se uma aragem abençoada, muito leve, muito levemente fresca, fazendo nas ramagens aquele som que parece o de uma suave ondulação marítima. Durante todo o dia o que se ouve são os pássaros, o zumbido de um insecto dançando sobre as flores, um avião que passa lá muito em cima, por vezes um sino ou um cão ao longe.


Muitas vezes, quando estou deitada lá fora, fecho os olhos e deixo-me estar assim, sem nada pensar, apenas sentindo a suavidade do ar sobre a pele, sentindo o perfume morno das árvores e da terra, ouvindo os sons quase inaudíveis que habitam o silêncio. Nessas alturas, a vida na cidade parece-me improvável, longínqua. A existência parece-me perfeita, eterna.


Sinto que podia viver sempre assim, nesta vida simples, sem sentir falta do bulício da cidade. Falo todos os dias com os meus filhos, sei que estão bem e que os meninos também, falo duas vezes por dia com a minha mãe, sei dela e do meu pai. Deles, sim, sentiria falta se não pudesse vê-los todas as semanas. Mas do resto não. Nem do trânsito, nem das lojas, nem do ruído das ruas, nem das intrigas, nem das espúrias ambições, nem das palavras com que os executivos enchem a boca, nem dos objectivos económicos, nem dos rácios, nem sei lá do quê. Nenhuma falta se não os tivesse tal como agora que estou longe não sinto quaisquer saudades.


Penso que gostaria de voltar a bordar, a fazer os meus grandes tapetes de arraiolos. Ou pintar. Telas enormes para sentir o prazer largo da liberdade. 

E ler. Estive lá fora a ler até às sete e tal da tarde, já o sol se punha sobre as serras, já os troncos das árvores começavam a ficar azulados. A ler. A ler memórias alheias, pensamentos que não são os meus, a ler. A ler. Tão bom ler assim, nua, ao entardecer, o ar a ficar mais fresco, mais leve. 

De vez em quando um pássaro levanta-se de uma árvore. Por vezes, outros a seguir fazem o mesmo. Fico a vê-los voar para longe. O meu pensamento por vezes acompanha-os. Mas a maior parte do tempo não. Fica aqui. In heaven.


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2 comentários:

bea disse...

A case of you é uma música de que gostei desde a voz de Cristina Branco a cantá-la. Não terá esta garra, mas é uma brisa parecida a Joan Baez.
Aproveite o que resta sem se lembrar que resta. Férias são esse esquecer de mundo que aproveita ao ano inteiro.

Anónimo disse...

Ninguém canta melhor "A Case of You" do que Joni Mitchell. Daí que esta versão não se lhe possa comparar.
P.Rufino