terça-feira, maio 30, 2017

Todos os livros que não lemos






Há mais livros neste mundo do que as horas de que dispomos para deles tomar conhecimento. Nem se trata mesmo de ler todos os livros que foram produzidos, mas simplesmente dos mais representativos de uma cultura em particular. Assim, somos profundamente influenciados por livros que não lemos, que não tivemos tempo de ler. 

Quem leu realmente Finnegans Wake -- quero dizer, da primeira à última palavra? Quem leu verdadeiramente a Bíblia, do Génesis ao Apocalipse? Somando todos os extractos que li, posso vangloriar-me de ter lido uma terça parte. Mas não mais que isso. Contudo, tenho uma ideia bastante precisa daquilo que não li.

Confesso ter lido Guerra e Paz apenas aos quarenta anos. Mas conhecia o essencial antes o ler. Quem leu As Mil e Uma Noites da primeira à última página? Quem leu verdadeiramente o Kama Sutra

Contudo, todos podem falar dele e alguns pô-lo em prática. Assim, o mundo está cheio de livros que não lemos, mas de que sabemos praticamente tudo. 

A questão é, pois, saber como conhecemos esses livros. 

Bayard diz que nunca leu o Ulisses de Joyce, mas que está em posição de falar dele aos seus alunos. Ele pode dizer que o livro narra uma história que se situa em Dublin, que o protagonista é um judeu, que a técnica empregue é o monólogo interior, etc. E todos esses elementos, ainda que não o tenha lido, são rigorosamente verdadeiros.

À pessoa que entra na nossa casa pela primeira vez, descobre a nossa imponente biblioteca e não encontra melhor do que perguntar-nos: 'Leu-os todos?', sei de várias maneiras de responder. Um dos meus amigos responderia: 'Mais, senhor, muitos mais'.

Quanto a mim, tenho duas respostas. A primeira é: 'Não. Estes livros são simplesmente os que terei de ler na próxima semana. Os que já li estão na universidade'. A segunda resposta é: 'Não li nenhum destes livros. Senão, porque os guardaria?' 

Há, evidentemente, outras respostas mais polémicas, que humilham ainda mais e frustram mesmo o interlocutor. 

A verdade é que todos possuímos dezenas ou centenas ou mesmo milhares (se a nossa biblioteca for imponente) de livros que nunca lemos. No entanto, num ou outro dia, acabamos por pegar nesses livros para perceber que já os conhecemos. 

Então? 

Primeira explicação ocultista, que não retenho: há ondas que circulam do livro até nós. Segunda explicação: no decorrer dos anos, não é verdade que não tenhamos aberto esse livro: pegámos-lhe repetidas vezes, talvez o tenhamos mesmo folheado, mas não o recordamos. Terceira resposta: durante esses anos, lemos uma quantidade de livros que citavam aquele livro, o qual acaba por se nos tornar familiar. 

Há, pois, diversas formas de saber alguma coisa sobre os livros que não lemos. 

Felizmente! De outro modo, onde arranjar tempo para reler quatro vezes o mesmo livro?


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O texto é o excerto de uma resposta de Umberto Eco a Jean-Philip de Tonnac in 'Não contem com o fim dos livros' e incluído no capítulo cujo título trouxe para encabeçar este post.

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As pinturas foram escolhidas por serem predominantemente em azul 

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Um dia feliz a todos quantos por aqui passam.

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