Já não me lembro se foi pelo Natal ou em que circunstância e se foi para os dois ou só para um deles. Tenho uma vaga ideia de que terá sido para o meu pai e que, logo na altura, detectei a surpresa e a ironia que tentavam disfarçar. Eu achava tão bonito e esperava embevecimento e não foi isso que vi. Simpaticamente diziam que era bonito, que gostavam, mas eu sentia que não sabiam bem o que dizer. Que idade teria eu? Nove? Dez? Menos? Sei que quis oferecer um presente escolhido por mim. Lembro-me de andar a pensar, de andar com a minha mãe e a olhar para as montras para secretamente ir percebendo o que havia de ser. Até que um dia vi numa montra uma peça que, logo, logo, me pareceu perfeita. Então combinei que um dia me afastaria da minha mãe para ir sozinha à loja. E assim foi. Lembro-me que era muito cara, muito mais do que esperava. Mas o dinheiro que levava era suficiente.
Em casa, escondi bem o presente. No dia certo, quando abriram, foi o que vos contei. Era um borreguinho branco, em biscuit. Peça com talvez menos de 10 com de tamanho, um borreguinho mesmo pequenino, naturalista, perfeitinho.
Hoje percebo o desconcerto deles. Lembro-me deles a mostrarem aos meus avós ou aos meus tios o presente que eu lhes tinha dado, escolhido e pago por mim. Mas lembro-me bem de perceber que sentiam vontade de rir e eu não percebia porquê. Ainda lá está.
Hoje estive lá ao fim do dia, quando regressei do meu compromisso. Vejo as mesmas peças de sempre, nos mesmos lugares de sempre. Por vezes penso que o tempo ali parou.
Uma fotografia tirada no fotógrafo quando eu teria acabado de fazer dezassete anos. O meu namorado de altura disse que gostava de ter uma fotografia minha, em ponto grande. Em ponto grande porque, se calhar, tinha em tipo passe. Esta terá uns quinze por vinte, coisa assim. Achei um disparate. Parece que apenas faço sentido ao vivo, com o que digo ou calo, a forma como olho ou rio. Não me reconheço quando me vejo cristalizada e fez-me impressão que ele não pensasse como eu. Que graça teria olhar para uma imagem de mim num bocado de papel?
Um dia passámos em frente do fotógrafo mais conhecido da cidade e ele, vendo algumas fotografias expostas, disse que era mesmo assim, que gostava de ter uma como aquelas. Por coisas dessas, tão contrárias à minha natureza, o namoro estava fadado para não dar certo. Mas, na altura, eu achava que devia esforçar-me para desvalorizar insignificâncias e acabei por lhe fazer a vontade. Quando a viu ficou maravilhado. Eu não. Para mim aquela fotografia não fazia sentido. Mas a minha mãe viu as provas, gostou muito, mandou fazer mais uma e colocou-a numa moldura. Lá está. Cabelos bem compridos, sorriso ao de leve, uma adolescente a esforçar-se por fazer um agrado ao namorado.
Em cima da camilha da sala está também uma coisa minha, que quis lá deixar ficar. Pelos meus anos pedi-lhe que me oferecesse alguns dos seus poemas que eram feitos para mim ou sobre mim, mas manuscritos. Fez mais que isso. Com a sua bonita letra, em tinta permanente, num papel de densa gramagem e encadernado a pele, fez um livro. Comoveu-me esse presente. Está lá. Quem o recebeu foi a adolescente da fotografia no fotógrafo, não a que fui depois disso.
E estão fotografias de netos e bisnetos, sobrinhos e sobrinhos-netos. Em algumas fotografias os netos tinham a idade que têm agora os bisnetos. O tempo passa a correr. Lembro-me tão bem de ter ido comprar, toda orgulhosa, o borreguinho. E tão bem que me lembro dos meus filhos, de tronco nu, a regarem o jardim da avó, o mesmo jardim onde agora os seus filhos brincam da mesma maneira.
Não sei se é o tempo que passa por mim, e passa correndo, se sou eu que faço a minha caminhada pela vida, andando mais depressa do que devia. Talvez seja isso, mas em vez de andar, talvez voe. Talvez como um pássaro, talvez como num sonho. Talvez.
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Saudade em forma de palavras
Saudade em forma de palavras
[Leonard Cohen - Bοοκ of longing - a poesia dita sobre música de Philip Glass]
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As fotografias são de Geert Weggen que gosta de fotografar esquilos (e percebe-se porquê)
Lá em cima também era Leonard Cohen. Interpretava Bird on the Wire
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Como esta sexta-feira me levantei muito cedo e porque o dia foi preenchido e cansativo, estou incapaz de pensar, não sei sobre que é que escrevi. Provavelmente não escrevi. Ou, se escrevi, foi sobre coisa nenhuma. Talvez esteja aqui apenas para vos dizer olá.
Vou descansar. Talvez amanhã consiga escrever sobre coisas que interessem. Talvez. Talvez.
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E um dia feliz a todos quantos por aqui passam.
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