quinta-feira, novembro 14, 2013

É a lei da vida, costumam dizer.








Não estou nos meus dias. Estive naquele sítio onde toda a gente me trata pelo meu diminutivo e onde olham para mim para ver se estou igual ao que era quando tinha seis anos e falava e ria para toda a gente. Hoje um homem com um físico fantástico, com cara de menino traquinas - mas que sei que tem quase 80 anos - e que já não me devia ver desde os meus 15 anos, olhava para mim e dizia com ar espantado que, se se cruzasse comigo na rua, era capaz de não me reconhecer. E logo dois gémeos, um magro e outro gordo, também por essas idades, olhavam sorridentes e diziam que eles, a mim, me conheceram mal me viram a chegar.

O tempo passa e, a cada vez que ali volto, vou notando a falta de alguns.

Quando há uns seis anos estive ali a despedir-me da minha última avó, juntaram-se aos meus pais e aos meus tios, os amigos de sempre deles. Duas grandes amigas da minha mãe e da minha tia disseram que já eram elas que estavam na linha da frente. Fez-me muita impressão isso.

Todas elas são muito bem dispostas, mulheres optimistas e vigorosas. A essas duas amigas, em momentos diferentes, morreu um filho em idade adulta e ambas ficaram destroçadas e falam disso com saudade mas com coragem. Falam com tristeza mas os rostos sorriem e depois prosseguem a conversa com animação, dizem graças. Conheço-as desde que nasci. Nessa outra noite, o meu tio disse-me como que para me conformar com a partida da minha avó, mãe dele, que nestas alturas é costume cair a folha. Estavam também lá os primos do meu pai. Um deles, o António, sempre o conheci com um porte atlético, alto, bem constituído, magro, ar de rapaz reguila. Lembro-me muito bem dele: quando eu era pequena e ele ainda solteiro, a mãe andava sempre preocupada com as coisas daquele filho terrível. Andavam de mota, ele, o irmão dele e os meus tios, todos rapazes novos que gostavam de acelerar, de ir para a rambóia, mas ele era o pior, gostava de empinar a mota, de sair a cuspir fogo. Jogava hóquei em patins e à noite nós íamos ver os jogos. Eu adorava aquele barulho dos patins a riscar o chão, as stickadas, os gritos, as palmas. Mas a ele, veloz, atlético, efusivo, era frequente saltar a tampa e pôr-se à tareia com os adversários. E, frequentemente, o meu pai, trinta ou trinta e poucos, todo atleta também (jogava volei e futebol, num grupo desportivo da empresa; aliás, num jogo, já eu andava no liceu, partiu uma perna e teve que ser operado e ainda hoje tem placas e parafusos), punha uma mão na vedação e saltava por cima, também com uma leveza fantástica, parecia que ia voar, e ia apartar o primo da zaragata. Por vezes, o irmão e outro meu tio saltavam também e viam-se aflitos para o serenar. Depois o jogo continuava. Fora isso, era um querido. Levou-me uma vez a meio da noite de casa dos meus avós para o hospital, passando antes por casa dos meus pais, estava eu com sintomas de tétano. Mas em vez de abrir o portão, saltou por cima do muro. Depois, no hospital, tiveram que andar a correr atrás de mim para me conseguirem dar uma injecção na barriga. Sempre gostei muito dele. 

Quando o meu pai teve o AVC, ele lá estava sempre no hospital, a segurar a mão do meu pai, comovido por ver o primo assim.

Inesperadamente morreu o ano passado. Foi um choque terrível, nem queríamos acreditar. nem sabíamos como dar a notícia ao meu pai.

No princípio do ano passado morreu também o meu tio, aquele homem com um vozeirão animado que parecia respirar saúde e alegria.

Esta quarta feira de manhã partiu a minha tia de quem no verão eu aqui dizia que estava contente por sabê-la tão animada e a sentir-se tão bem.

No espaço de ano e picos os meus primos perderam os pais que antes pareciam ambos tão bem. 

A última vez que falei com a minha tia, talvez há umas três semanas, já ela se cansava bastante a falar. Estivemos, como sempre, muito tempo ao telefone. Eu tentava convencê-la a ter lá alguém em casa a ajudá-la e a fazer-lhe companhia. Não queria ir para casa dos meus primos, nem para lado nenhum, sempre teve paixão pela sua casa. Nem sequer queria ter uma empregada interna. Que ainda conseguia tratar de tudo, que se poupava, que andava devagarinho, que se amparava às coisas, que volta e meia se sentava ou deitava a descansar, que a ver se na próxima consulta lhe receitavam qualquer coisa para lhe dar mais forças. Mas eu insisti: que de noite, se tivesse que se levantar e se lhe faltassem as forças, como seria?, que era melhor ter companhia, e ela que por enquanto ainda não, e que as amigas iam lá a casa e que a ajudavam e que preferia assim - e sempre a tratar-me, com muito carinho, pelo meu diminutivo como sempre me tratou desde que nasci. E depois, para me descansar, disse-me o que me lembro que devem ter sido as últimas palavras que lhe ouvi antes dos beijinhos de despedida, 'Sabes? Ainda não tive medo. Se tivesse medo, se calhar gostava de ter cá em casa alguém. Mas não. Ainda não tive medo'. Não me disse de que é que ainda não tinha tido medo nem eu lhe perguntei.

Depois foi muito rápido. Começou por deixar de conseguir andar. Mas disse à minha prima que estava era a precisar de fisioterapia, que as pernas estavam a perder a força. Depois, tão cansada estava, já mal conseguia falar. A semana passada aceitou que os meus primos contratassem alguém para lá ficar a dormir. Mas a cada dia que passava, a situação se agravava. Percebíamos que o fim estava iminente e que tristeza eu sentia. 

Já se foi. Esta quinta feira transformar-se-á em pó como quis. Ainda não sei mas presumo que se vá juntar ao meu tio na Serra da Arrábida de que ambos tanto gostavam.

Nestas situações as pessoas, não sabendo o que mais dizer, costumam dizer que é a lei da vida. Esta noite não ouvi ninguém dizer isto. Recordavam, sim, a sua força, a sua alegria, as suas piadas, sempre com graças, sempre a rir.

Quando me casei, menina ainda, ao ter que escolher os meus padrinhos foi a eles que logo escolhi. Deles só guardo felizes recordações, carinho, apoio, muita alegria. Faz-me muita impressão e dá-me muita tristeza que se tenham já ido embora.

*

Lamento se hoje não consegui abstrair-me das minhas coisas e partilhei convosco este meu estado de espírito. Tenho os meus dias e estes não têm sido fáceis.

Mas isto passa-me, vão ver.

*

Desejo-vos, meus Caros Leitores, um dia muito feliz. 
A vida é curta meus amigos. Saibamos aproveitá-la bem.

7 comentários:

Alice Alfazema disse...

Um abraço.

Anónimo disse...

Um beijinho carregado de ternura para a jeitinho.
Ana

A Matéria dos Livros disse...

Um abraço.

José Rodrigues Dias disse...

Caríssima UJM:

Permita-me, sem outras palavras, partilhar aqui o texto de hoje do meu blog.
Saudações amigas, sentidas.

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A tua rua
nas casas de maior sabedoria
vai ficando mais pobre,
mais vazia,
quando num dia assim chove
sem percebermos por que chove,
por que há-de assim chover
molhando o sorriso
que há em nós
e que se esfria
sem ainda entender…

Mas nós,
tu sabes,
somos também rua
tua…

Évora, 2013-11-14

José Rodrigues Dias

MCP disse...

Não sei se é a lei da vida, mas que acontece quando menos esperamos, acontece...
Um forte abraço.

GL disse...

Abraço grande.
A "lei da vida" não nos trás qualquer conforto.

margarida disse...

Stop all the clocks, cut off the telephone.
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.

Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling in the sky the message He is Dead,
Put crêpe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last forever, I was wrong.

The stars are not wanted now; put out every one,
Pack up the moon and dismantle the sun.
Pour away the ocean and sweep up the wood;
For nothing now can ever come to any good.

Wystan Hugh Auden

Funeral Blues