A minha filha dizia que a avó se autoboicotava. E eu concordava. E, apesar de já passar mais de um ano desde que a minha mãe se foi, penso cada vez mais isso. Na aparência, era uma pessoa solar, bem disposta, sorridente, alegre, conversadora. Mas, no seu íntimo, escondia medos. Para os esconder, refugiava-se dentro daquela persona desempoeirada e feliz que exibia perante terceiros.
Mas, se, até quase ao fim, escondeu várias coisas de mim, houve uma de que eu sempre estive muito ciente, embora também a escondesse dos outros: a sua grande preocupação com a opinião alheia. Desde que me conheço, sempre a senti muito condicionada pelo que os outros pensavam ou podiam pensar. Tentou passar-me isso. Mas sem sucesso. Talvez até como reacção, não sei, a verdade é que sempre me estive nas tintas para a opinião alheia. Mas eram permanentes as recomendações de que não dissesse ou fizesse isto ou aquilo pois a minha tia, a minha avó, o meu pai, os meus sogros, os meus vizinhos ou fosse quem fosse poderiam pensar de mim. No entanto, no convívio social, não deixava transparecer nada disso.
Mas a questão de se autocondicionar foi uma constante na sua vida. Desde que me lembro, a minha mãe deixava transparecer que, por ela, faria não sei quantas coisas. Mas, segundo ela, o meu pai não alinhava. Geralmente não dizia isso ao pé dele, supostamente para não o incomodar. Mas não sei se era por isso ou se era para não correr o risco de que ele rebatesse o que ela dizia.
Quando o meu pai estava limitado e, posteriormente, acamado, nós dizíamos que ela poderia fazer uma série de coisas pois a senhora que lá ia pelo menos três vezes por dia tratar dele poderia ficar lá em casa enquanto ela fosse sair para se encontrar com amigas, para passear, para o que lhe apetecesse. A própria senhora estava sempre a oferecer-se e a incentivá-la a isso. Mas nunca quis. Ao mesmo tempo falava com pena do que as amigas faziam, mostrando ter vontade de fazer o mesmo. Contudo, creio que a razão para nada fazer era que temia que pensassem mal dela por ir distrair-se enquanto o marido ficava fechado em casa.
Quando o meu pai morreu, tentámos que finalmente fizesse tudo o que sempre tinha querido fazer. A duras custas conseguimos que fizesse algumas coisas. Mas sempre como se estivesse contrariada, como se estivesse a fazer o sacrifício apenas para não a chatearmos mais. E arranjava desculpas para tudo e mais alguma coisa. Para vir passar o dia a minha casa, era uma luta. O meu marido aborrecia-se comigo pois achava que estava a forçar a minha mãe a fazer uma coisa que não queria. Mas eu tinha a sensação que era aquela sua postura de sempre, a de mostrar que não queria, que, por ela, não vinha, não lhe apetecia, para, por fim, quase como se não conseguisse ouvir-me mais, lá ceder.
Para passar férias connosco no Algarve foi o bom e o bonito. Não queria, não, não, não. Mas, ao mesmo tempo, eu parecia-me perceber que, no fundo, no fundo, até queria, mas que ofereceria resistência até mais não poder, até parecer que ia obrigada. Depois, estando lá, estava tudo bem, mas, até ir, era uma luta incrível. E às amigas e vizinhas, do que eu depois percebia, transmitia que, por ela, não queria mas que tanto a tínhamos pressionado que, contrariada, lá tinha feito o sacrifício.
Guardo esta mágoa de pensar que a minha mãe, por motivos lá dela, nunca conseguiu libertar-se de amarras imaginárias para fazer tudo o que lhe apetecia. Mas também admito a hipótese de que talvez nunca lhe tivesse realmente apetecido fazer aquilo com que parecia sonhar. A mente tem coisas insondáveis, não é?
As pessoas por vezes constroem barreiras dentro de si mesmas e, para lhes darem credibilidade, criam também narrativas para as justificarem e, de tanto alimentarem alguma auto-comiseração e de tanto se sentirem cercadas, acabam por acreditar que são reais.
Pela parte que me toca não sou muito disso. Geralmente, se meto uma na cabeça não descanso enquanto não a faço. Posso até admitir que vão censurar-me ou que não irão aplaudir-me, mas, muito sinceramente, nada disso me tolhe.
Há coisas que nunca fiz. Nunca andei de helicóptero, nunca fiz paraquedismo nem asa-delta, nunca montei, nunca fiz mergulho ou escalada, nunca fumei erva (e, muito menos, qualquer outra droga), nunca conduzi uma mota, nunca cantei num karaoke, etc. E sei que nunca vou fazê-lo. Não porque não tenha oportunidade mas porque não quero. Não acho piada fazer coisas que me dão medo ou que vão contra a minha natureza. Por isso não lamento o que não fiz porque se as não fiz foi porque não quis. Em contrapartida, se houver coisas que gostaria de fazer, tudo farei para as fazer. Geralmente adequo os meus desejos às minhas possibilidades. Por exemplo, não me ocorre conduzir um Ferrari descapotável e isso não apenas porque não é coisa que me seduza mas também porque não é coisa que esteja à minha mão de semear. Ou seja, não sou de ter sonhos pois sonhos são, por definição, coisas imateriais, quase intangíveis. Sou de ter vontades pois das vontades a gente pode ir atrás. E pode agarrá-las.
Mas, do que conheço da vida, uma coisa dou como muito certa: se a gente gostava de fazer uma coisa, se tem essa vontade, deve concretizá-la. Senão, vai chegar ao fim da vida carregadinha de mágoas.
O exemplo deste vídeo é até tocante.
2 comentários:
Uma sugestão: tente dar uma voltinha de helicóptero, e peça ao piloto para rapar( rente ás copas das árvores) ou, ainda, para deleite, seguir o voo de pássaros, nunca mais vai esquecer essa magia.
Jamais... É que nem pensar....
Só de pensar nisso já sinto os pés a ficarem sem força, aquela coisa de quem sente vertigens... Pode ser lindo... mas o terror de cair, de me despenhar, de ir pelos céus abaixo impediria de ver o que quer que fosse....
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