terça-feira, janeiro 30, 2024

Um dia em que andei, andei... para não fazer nada

 

Um amigo contava-me que a mulher, sempre que tinha que tratar de assuntos burocráticos oficiais, enchia-se de tal camada de nervos que lhe acontecia chorar de impotência e incapacidade, convencida de que jamais conseguiria ultrapassar todas as barreiras que, à partida, antevia e que, depois, na verdade, enfrentava. Lembro-me de ele exemplificar com os assuntos relacionados com o falecimento dos pais em que o pai, sendo professor universitário, descontava para a CGA, e a mãe, exercendo uma profissão numa empresa, descontava para a Segurança Social. E tinham uma casa e tinham um carro e tinham uma ou mais contas bancárias. Sendo ela a mais velha face à irmã, era a cabeça-de-casal  da herança. Ou seja, competia-lhe a ela tratar de tudo. Ora ela, de certa forma um pouco despistada por natureza, digamos assim, e, ainda por cima, vivendo num mundo que aliava a criatividade à técnica, tudo o que era burocrático lhe era alheio. Quando eu sugeria que ela se apoiasse na irmã, dizia-me o meu amigo que a irmã da mulher ainda era pior.

Portanto, eu ouvia esse meu amigo ao telefone com ela, tentando acalmá-la ou a dar-lhe pistas enquanto, do outro lado, ela desatinava com os documentos necessários, desatinava com a precedência das tarefas, não sabia se tinha que ir primeiro ao Notário ou à Conservatório ou às Finanças, não sabia onde arranjar os documentos que lhe pediam, dizia que ia desistir, que não conseguia coragem para superar tanto obstáculo.

Eu não serei tão desesperada assim mas sinto que ando por lá perto. Também me sinto, à partida, vítima de um sistema feito para pessoas que percebem dos meandros destas coisas, não para gente meio aluada como eu. Acresce que, quando tenho alguma coisa para fazer, embora tenha tempo, não descanso enquanto não o faço. Quando trabalhava também era assim. Procrastinar não é comigo. Pelo contrário, tentando antecipar possíveis contratempos, quero sempre despachar tudo antes de tempo. Assim, se me surgirem impedimentos ou se houver atrasos inesperados, tenho folga para acomodar esses imprevistos.

Agora, nas actuais circunstâncias, tenho que comunicar isto e aquilo, tratar disto e daquilo. E tenho tempo, três meses mais concretamente. Mas prefiro tratar já de tudo. Apesar de serem coisas em que preferia não ter que tocar, não descanso enquanto não me livrar delas. 

Assim, hoje, seguindo as indicações da senhora da agência funerária que me entregou um papelinho com o que eu teria que fazer e tendo eu também pesquisado, fui a uma Loja do Cidadão tratar do que me parecia ser o primeiro passo. Antes, cuidadosamente, tinha preparado um envelope com todos os papéis que eventualmente poderiam ser necessários.

Depois de ter estado à espera, ao chegar à minha vez, a funcionária disse-me que esse não era o primeiro passo, antes tinha que tratar nas Finanças.

Aborrecida mas a tentar conformar-me, desloquei-me para a zona das Finanças. Aí já não havia senhas. Portanto, vencida, regressei a casa.

Tentei lembrar-me de como tinha sido com o meu pai, do que tinha feito na altura. Mas, quando o meu pai morreu, sendo a minha mãe a cabeça-de-casal de herança (chama-se assim), teve que ser ela a tratar de algumas coisas. Portanto, nem sei bem como é que foi e, do que fui eu que fiz, também já mal me lembro.

Voltei ao google, pesquisei e repesquisei. Tentei, então, fazer online para não ter que ir para a Loja do Cidadão, e segui os passos, um a um, com todo o cuidado. Mas, logo ao entrar, apareceu-me um formulário para preencher. Mas era em PDF, não dava para eu lhe escrever em cima. Depois vi que, mesmo que conseguisse, tinha que anexar o documento que a funcionária da Loja de Cidadão me disse que era a segunda coisa a fazer, não a primeira.

Já baralhada de todo, liguei então para o número de apoio ao contribuinte. Atendeu-me uma senhora simpatiquíssima que me disse que a colega da Loja do Cidadão não sabia do que falava e que o primeiro passo a dar seria justamente o que eu queria ter dado. 

Com isto já eram quase seis da tarde. E, na prática, estava no ponto de parida, ou seja, sem ter tratado de nada.

Lembrei-me da mulher do meu amigo e pensei que percebia bem o desespero dela e a vontade de chorar que estas coisas lhe davam.

Lembrei-me também de um colaborador meu que, quando a mãe lhe morreu, ao fim de algum tempo meteu uns dias de férias para tratar das coisas, incluindo esvaziar a casa da falecida. Era para ter tirado salvo erro uma semana. Mas acabou por ter tirado salvo erro três, aparecendo, depois, mais magro, mal encarado e, dizia ele, à beira de uma depressão. Diz que não atinava com nada da papelada, não descobria papéis que eram essenciais, desorientava-se lá nos serviços, dizia que tinha que se conter para não ser violento (embora reconhecesse que os funcionários das repartições não tinham culpa de nada). Mas, dizia ele, o pior tinha sido esvaziar a casa. Eu tinha conhecido a senhora. Era uma senhora fantástica, da burguesia nortenha, uma senhora muito distinta, ligada a associações de beneficência, presidente de uma delas, uma senhora sempre altamente produzida. Morava num grande apartamento numa das melhores zonas do Porto. Dizia esse meu colaborador que a mãe tinha roupas infinitas, infinitos sapatos, infinitos colares, infinitas pulseiras e anéis, infinitos álbuns de fotografias, infinitos álbuns de recortes de tudo e mais alguma coisa feitos pelo pai, falecido anos antes, infinitas prateleiras e gavetas de moedas pois o pai tinha sido coleccionador, tudo muito bem acondicionado, tudo catalogado, que era tudo infinito, lençóis, colchas, cobertores, toalhas, serviços de louça, de copos, faqueiros, tudo infinito. Ele não sabia o que fazer àquilo tudo, não tinha onde guardar nada daquilo. Pôs a hipótese de se mudar para casa da mãe e vender a dele. Mas a mulher recusou-se a ir morar para o museu que era a casa da mãe. Diz que por pouco não se divorciou da mulher tal a crise que se gerou com tudo aquilo. Voltou ao trabalho não porque tivesse acabado a tarefa mas porque a interrompeu. 'Cheguei a um ponto em que já não sabia o que fazer à minha vida. Olhe, em bom português, caguei. Daqui por algum tempo, a ver se me encho de coragem... e se as coisas entre mim e a minha mulher se aliviam', dizia ele, derrotado, sem saber quando conseguiria energia para voltar a casa da mãe e sem saber o que fazer a tudo o que lá estava dentro.

E eu, pensando nisso, também já me encolho toda. Vai ser muito difícil por todos os motivos. Nem quero pensar. Mas, por isso mesmo, também quero atirar-me a isso o mais depressa possível. Sinto que não sentirei descanso enquanto não ultrapassar essa terrível tarefa.

Mas, por enquanto, ainda estou no capítulo da burocracia.

Enfim....

(Quanto ao resto, vou tentando assimilar, vou tentando superar aqueles momentos de tristeza que teimam em aparecer. Mas a vida continua.)

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Um dia bom

Saúde. Força. Paz.


4 comentários:

Anónimo disse...

Cabeça-de-casal da herança.Chama-se assim e não cabeça da herança.

Pôr do Sol disse...

Querida Um Jeito Manso,

Tarefa dificil essa a que se propõe agora.

Acompanhei na semana passada uma amiga a quem a condição de filha única obriga essa empreitada. E, é como diz, penoso mas não deve ser adiado. Estava um dia lindo de sol e cheirava a primavera o que facilitou a visita. Neste caso uma vivendinha num bairro simpático perto de Algés e, desde Agosto desabitada, era cobiça constante das imobiliarias.

As filhas da minha amiga não estavam de acordo com o destino a dar á casa. Uma queria vender, a outra queria ficar com o que chama ninho dos avós e os filhos dois rapazinhos adoram o espaço.

Chegado a um acordo havia que esvaziar. Ninguem valoriza ao comprar, mobilias antigas, louças, livros, roupas, rendas e crochets.

Aqueles anuncios que dizem comprar recheios de casas procedem como se fizessem um favor em levar moveis de qualidade e estilo e serviços completos de louças com cem anos.

Mais uma vez tive consciencia de que temos coisas a mais. Levamos uma vida a juntar e de um dia para o outro será tudo descartável. Que dificil é cortar o apego a biblots que recordam aniversarios ou a quadros para que toda a vida olhámos.

Na prática aos jovens casais não interessa louças que não podem nem devem ir à máquina, nem rendas dificeis de engomar.

Mas fiquei feliz ao ouvir planos para uma colcha de crochet que será um cortinado depois de tingida, lençois com rendas que irão para cortinas e naperons que aplicados em linhos coloridos serão elegantes individuais. Espero poder ver ainda a transformação daquela bonita moradia.

Um beijinho, paciencia para tanta burocracia e falta de formação de alguns funcionarios publicos e muita força. Sabe que a tem.

Um Jeito Manso disse...

Caro Anónim@

Será...? Vou acreditar em si e vou emendar....

Obrigada.

Um Jeito Manso disse...

Querida Pôr-do-Sol

Tem razão. Ainda no outro dia, quando eu estava a dizer que não sabia a fazer às coisas de maior valor da casa da minha mãe, o meu filho disse que poderíamos trazer e, se em casa não tivéssemos onde pôr --- e não temos --, que as puséssemos, encaixotadas, na garagem. E a minha filha concordou. E o meu marido disse que eles não estavam bem a ver o problema que iam ter quando nós morrêssemos...

E é verdade... Tanta coisa que uma pessoa vai acumulando ao longo de anos.

Mesmo a nível de livros é complicado. Os meus pais tinham ainda bastantes. Por exemplo, a obra completa de Eça ou de Camilo e não sei se Aquilino. Muitos livros... Eu já os tenho. Os meus filhos, mesmo que não os tenham a todos, terão alguns. Mas, sobretudo, já não têm onde pôr mais. A minha nora dizia que já têm pilhas de livros na cave. As casas têm os seus limites. Em especial quando há crianças que têm também as suas coisas que ocupam espaço, chega-se a um ponto em que já não há espaço físico para mais.

E eu, vendo aquelas coisas que a minha mãe, com tanto gosto, comprou e arrumou, que eram tão especiais para ela, fico sem saber oq ue fazer à minha vida. Ainda ontem o meu filho me dizia: 'As leiloeiras vivem muito desse tipo de coisas que as famílias não sabem o que fazer delas...'. Mas custa-me separar-me das coisas de que ela, em particular, era tão afeiçoada. O meu pai era mais desprendido.

É o que diz: temos coisas a mais...

Um grande abraço, querida Sol Nascente!