E, portanto, lá fui de novo.
Ao dirigir-me para o dito balcão fui interceptada: Tem senha?
E eu, já começando a temer algum novo contratempo: Ontem disseram-me que, para aquele balcão, não era precisa.
E a funcionária, depois de eu lhe dizer que ia para os registos: Mas tem marcação?
E eu, já a perceber que tinha razão para estar assustada: Marcação? Não... Mas marcação como? Ontem disseram-me que primeiro tinha que ir às Finanças mas nas Finanças disseram-me que não, que primeiro era mesmo nos Registos. Estou a vir...
Ela, a olhar para mim como se eu fosse um caso perdido: Mas não pode vir sem marcação...
E eu, quase com vontade de implorar: Mas marco como? Onde? Tiro alguma senha...?
Ela, olhando-me de alto a baixo, tentando avaliar a dimensão da minha ignorância, e concluindo que mais valia ser empática: Olhe, venha comigo...
Lá fui. Chegando à zona dos Registos, disse-me: Espere aqui que vou ver se peço a uma colega para vir ajudá-la.
Agradeci. E ali fiquei de pé, nem sentada ao balcão como os que estavam a ser atendidos nem sentada na sala de espera como os que estavam a aguardar a sua vez. A que tinha ido comigo desapareceu lá para dentro. Depois vi uma outra a uma porta, a espreitar, e a que me tinha escoltado a apontar para mim. Eu a ver-me, indigente, sem saber bem ao que ia, sem saber bem o que fazer.
A primeira despediu-se amavelmente de mim, deixando-me ao cuidado da que veio de lá de dentro.
Esta olhou-me com ar circunspecto. Depois disparou à queima-roupa: Quem é que morreu?
Eu, ar certamente muito infeliz: A minha mãe.
E ela: Qual era o estado civil dela?
E eu, obediente embora sem atingir a pertinência da pergunta: Viúva...
E ela, séria, profissional da cabeça aos pés, como se a querer medir a dimensão do meu desconhecimento: E, na altura, ela tratou da habilitação de herdeiros?
Eu, já aflita: Não sei ao certo.
Ela, categórica: Não sabe? É que faz toda a diferença. Se não fez, primeiro terá que fazer a habilitação de herdeiros do seu pai. Depois é que pode fazer a da sua mãe.
Vi a vida a andar para trás. Tentei reconstituir: Foi na altura Covid, eu tratei nas Finanças online e a minha mãe fez qualquer coisa que tinha que ser ela a fazer e que tinha que ser presencial. Seria isso?
Ela, como quem começava a perceber que tinha que falar comigo como com uma criança de cinco anos: O que se faz nas Finanças não tem nada a ver com a habilitação de herdeiros.
Puxei pela cabeça mas sem me lembrar de ter visto nenhum documento com esse nome.
Ela, com ar de quem estava disponível para vir em meu socorro: E a certidão de óbito tem aí consigo?
Eu: Tenho.
Ela: Então dê-me cá que eu vou ver se descubro.
E lá foi para dentro com o papel na mão.
Passado um bocado, apareceu, ar satisfeito: Fez, sim senhora.
Respirei de alívio.
Ela, diligente: Tem aí o seu Cartão de Cidadão?
Eu, satisfeita por conseguir responder sem hesitação: Claro.
E ela, com ar de quem me põe à prova: E o da sua mãe....? Também tem?
Eu, aliviada por estar a sair-me bem: Também tenho.
Ela, toda executiva: Dê cá.
Nem questionei, dei logo.
Fotocopiou e veio ter comigo: Diga-me a sua morada. E o seu telemóvel.
Obedeci, sentindo-me agradecida por ela ser tão prestável e por eu ir ficar despachada. Pensei que ela ia fazer a dita habilitação.
Mas eis que ela me pergunta se num dado dia a uma determinada hora estou disponível. Percebi, então, que não estávamos a tratar da dita habilitação mas do seu agendamento.
Confirmei a minha disponibilidade.
Ela, demonstrando que achava que a minha cabeça é mais pequenina que a de um pombo: Mas não aponta...?
Eu: Não é preciso, eu não me esqueço.
Ela, cheia de dúvidas: Tem a certeza? Não é melhor escrever aí num sítio qualquer?
Eu: Não, não me esqueço.
Agradeci. Quando estava a dar meia volta, regredi: Mas e a certidão de óbito? Fica cá?
Ela: Sim, querida. Depois dou-lhe.
Eu, imaginando o documento perdido no meio daquela miríade de papelada que por ali circula: Mas não se perde...? Não tenho cópia...
Ela: Não, querida, não se perde, vá descansada.
E eu, parecendo que não, vim de lá contente. Parece que o primeiro passo está a caminho de ser dado. Pode parecer absurdo da minha parte mas, como expliquei antes, este mundo burocrático assusta-me, receio não ser capaz de arranjar tudo o que me pedem ou não conseguir arranjar a tempo de cumprir todos os prazos. Portanto, pelo menos já consegui fazer um agendamento.
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E estou a ler um livro extraordinário, daqueles livros que a gente, quando os lê, percebe que quase tudo o resto que anda a ler é coisa pouca, volátil. Este é literatura, é memória, é carne viva, é inteligência, é sensibilidade.
O próprio prefácio é uma preciosidade. Assina-o Eduardo Prado Coelho.
A ver se avanço mais na leitura para falar dele, talvez transcrever algumas passagens. O que é bom é para ser partilhado.
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Um dia bom
Saúde. Coragem. Paz.
4 comentários:
UJM
Depois da habilitação de herdeiros, e inscrição do imóvel nas finanças, o calvário não acabou. Ainda falta a via sacra nos departamentos da Câmara, com as licenças de habitabilidade caso o imóvel seja depois de 1957, ou feitas obras depois desta data salvo erro, mais apresentação de projeto energético por um Engº eletrotécnico quer para aluguer, quer para venda, e mais uma ou outra declaração, e mapa de implantação do imóvel se está ou não em perímetro de monumentos nacionais etc. Enfim, também com a morte dos meus pais , como herdeiro dos imóveis percorri essa monumental burocrata e interminável caminhada. Mas com paciência chega ao fim "vivinha da silva. Creia.
Qual papel ?
https://youtu.be/L86T-_77Wi8
Já era assim no tempo dos romanos.
https://youtu.be/ZgOFSPR2Mhs
Ai Ccastanho não me assuste... Só de pensar nessas odisseias burocráticas em que parece que debaixo de cada pedra aparece uma minhoca até fico doente...
Olá Anónim@
Pois, é: 'O papel.', 'Qual papel?', 'O papel'... Tal e qual...
Quanto aos romanos... quem diria?
Já me fez rir.
Obrigada.
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