quinta-feira, dezembro 22, 2022

Jéssica

 

Ao ver as notícias, algumas ferem-me de forma devastadora. Ao querer comentar uma delas, o meu marido quase me gritou. Não quer ouvir, não quer falar. Eu queria falar apenas para ele me ajudar a tentar a perceber. Mas creio que também não consigo verbalizar os horrores que se vão conhecendo. Nem pensar eu consigo. E, no entanto, não me sai da cabeça.

Há casos, como os de Putin, em que a gente até percebe uma motivação. Quer restaurar o sonho imperial e, narcisista e psicopata como é, habituado a dispor da vida alheia, lutando pela própria sobrevivência, não se importa de matar, estropiar, destruir, arrasar, chacinar. Invade um país porque acha que é um país sem direito a existir, quer anexá-lo, e, de caminho, não olha a meios. Mata os seus, a quem manda para a guerra, mata os outros a quem inflige uma guerra em que não se consegue acreditar de tão absurda, tão cruel, tão ridícula. 

E há outros. Vulgares criminosos, gente que tem um passado de desamor e abandono. Ou outros, sem escola que não a do crime. Tantos casos, cada um com a sua história.

Mas depois há aqueles em que a humanidade parece não existir, em que não se percebe propósito, em que parece não haver nem coração nem cabeça nem olhos nem ouvidos nem nada. Quando leio ou ouço sobre o que aconteceu à menina de Setúbal, Jéssica, fico petrificada. 

O que a mãe lhe fez, aquilo a que aquela criança foi submetida, o que a outra mulher lhe fez, tudo, tudo, tudo, me deixa aterrada. Não lhes custou ouvir o choro da menina, ver as sus lágrimas, assistir ao seu sofrimento? Como é possível? Como? E porquê? Quando vi as imagens, vi um mulher de meia idade com ar de quem não é abastada; quando vi a mãe da menina vi um mulher que também não é abastada. Faziam o que faziam a troco de quê? De quanto? A vida de um menina a troco de quatrocentos euros. Se qualquer delas trabalhasse facilmente ganharia quatrocentos ou mais euros. Porque optaram pela vida desgraçada que viviam? Há aqueles casos de tráfico de droga em que fazem o que fazem para viver em grandes casas, ter grandes carros. Mas estes pobres desgraçados faziam o que faziam para quê? Para viverem pobremente como parece que viviam? E o que aconteceu para terminar nisto, para se terem desumanizado a este ponto? E como foi possível que nenhum conhecido ou vizinho tivesse percebido o que se passava com a menina?

O que li e ouvi se calhar é apenas uma pequena parte da miséria moral daquelas pessoas, da desgraça que era a vida daquela gente, do sofrimento pelo qual a criança passou. Mas é tudo tão estranho, tão infeliz. Preocupamo-nos, e temos razão para isso e tudo o que se faça é pouco, com o sofrimento das mulheres vítimas de violência doméstica. E com o sofrimento das crianças vítimas de abusos, violações e maus tratos às mãos dos pais, padrastos, avós incapazes de lhes assegurar uma vida segura e feliz, temos a certeza de que há uma rede de vigilância e apoio? 

E como agir perante tamanha desestruturação? Vendo o que é a desumanidade, a ausência de valores e de alma destas pessoas, como devemos nós reagir? O que podemos nós, a sociedade, fazer para prevenir situações destas? Haverá mais casos assim? Haverá, claro. Mas como se chega a isto, a este ponto? Terá retorno?

Sei que haverá por aí, entre quem me lê, quem cinicamente me ache uma idiota, uma ingénua, quem ache que no fim da pior noite casos destes há é muitos. Seja. Mas fechamos os olhos? Banalizamos? Relevamos? Não podemos ajudar?

Não consigo deixar de pensar nisto. Na menina. Na mãe e na avó da menina. Na pseudo ama. O que aconteceu na vida destas pessoas para que a vida de uma criança tenha perdido o significado, o valor? Para que a compaixão ou o amor tenham desaparecido tão por completo?

Acho isto tão triste...

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Um dia bom

Saúde. Compreensão. Paz.

4 comentários:

Maria disse...

Além de triste é aterrador! Sobrepõem- se as vinganças, os ódios entre pessoas que, embora como diz, possam ter vivido situações difíceis, marcantes. Sim, mas com a idade que têm, já têm uma cabecinha pensante que lhes saberá distinguir o bem do mal.
Só que é mais forte o sangue ruim da vingança.
Como o seu marido, não quero discutir nem explicar o inexplicável, trata se de uma criança, meu Deus ,apenas uma criança...
Maria

Anónimo disse...

Pelo que me apercebi, nenhuma das técnicas da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens veio às televisões afirmar que a “criança estava sinalizada”.
Talvez já nem se deem a esse trabalho. De facto, tal não tem servido para nada. Recordo a sinalizada Valentina, morta pelo pai e pela madrasta, à porrada e com água a ferver, com apenas nove anos, dois anos depois de ter fugido de casa, aos sete anos, e encontrada posteriormente pelas autoridades...

https://www.dn.pt/pais/a-morte-de-valentina-tudo-o-que-se-sabe-12188130.html

Pôr do Sol disse...

Há um submundo de horrores e loucura que nos invade a casa.

Quando procuramos saber que proteção têm as pobres crianças, quando há denuncias, ouvimos que já estavam sinalizadas. Si-na-li-za-das? Como? Com quê? Para què? Não se faz nada e as consequencias são estas.

É revoltante não se responsabilizar quem as sinalizou. São cumplices nestes crimes. Falta de meios? Se agissem os meios apareciam.

A certeza da impunidade leva a que esta sociedade caminhe para situações sem retorno.

Cada vez tenho menos confiança na justiça. Há falta de juizes e de valores humanos. Há dias em que falta a esperança em dias melhores.

Vivemos uma época de Paz na terra aos Homens de Boa Vontade. Vai tudo rareando. Se é que ainda existe.

Um abraço e desculpe os desabafos.

Um Jeito Manso disse...

Maria, Anónim@, Pôr do Sol,

Sempre me intrigou que a Polícia não 'apanhe' os traficantes quando deve bastar seguir o rasto do consumo.

Do que percebo, os grandes traficantes não sujam directamente as mãos, recorrem ao submundo da miséria par que sejam estes desgraçados a arriscar tudo. Mas que se chegue ao ponto de usar o corpo de uma criança de 3 anos para esconder a droga ou para servir de arma de pressão isso já me parece uma coisa infame de mais. Não houve polícias, assistentes sociais, vizinhos, familiares que tenham desconfiado d miséria moral que li se vivia?

É muito mau e penso integralmente o mesmo que vós. Só espero é que a morte desta criança sirva para, ao menos, acordar as consciências de quem deveria ter agido e não agiu.

Um abraço!