sexta-feira, abril 01, 2022

Viver a guerra e ser capaz de falar sobre ela, ser capaz de falar da disponibilidade para matar

 


Conheço algumas pessoas que, no tempo da outra senhora, estiveram na guerra em África. Nunca querem falar nisso. Um deles é muito extrovertido, meio amalucado, por vezes quase inconveniente. Fala de tudo e mais alguma coisa -- menos dos seus tempos na guerra.

Sendo casado e com um filho adulto, apaixonou-se perdidamente por outra mulher. Enquanto ele estava de corpo e alma nessa louca paixão, a outra, divorciada, andava a ver que peixe vinha à rede. Tinha casos atrás de casos e em nenhum estava inteira. Mas era ousada, atrevida, disposta a todas as aventuras. Ele andava maluco com tanto arrojo. Sendo casado em casamento de longo curso, este romance trazia-lhe o sopro de juventude que sempre sabe tão bem e, tanto o fogo que o consumia, que andava fora de si. Mudou a maneira de se vestir, a maneira de trabalhar e, quase, a maneira de ser. Andava eufórico como um teenager a descobrir o amor.

E falava disto com naturalidade. Até que ela, vendo que ele estava capaz de tudo, se retraiu. Ele estava pronto para largar o casamento e viver exclusivamente para a sua namorada. E ela, pura e simplesmente, queria escolher a melhor opção. E, um dia, de forma directa, acabou por lhe dizer que podiam continuar, sim, mas como amigos e amantes. Ou seja, ele que não alimentasse ilusões.

Teve um desgosto enorme, ele. Já tinha comunicado à mulher que queria separa-se. Disse-me: Saltei do comboio em andamento, caí, magoei-me e, quando me levantei, estava sozinho. 

A partir daí a coisa descambou: ele zangou-se, ela arrependeu-se de o ter descartado e, não sei como, aquilo acabou com ela a ligar a meio da noite para casa dele, a mulher a desconfiar que afinal o amor do marido era alguém que ela bem conhecia, depois a ter mesmo a certeza disso, ele furioso com a ex-namorada, ela a vingar-se dele (já não me lembro porquê) e, por fim, já havia suspeitas de intrusão informática, ameaças de denúncia na polícia. E sei lá que mais. Tudo tão excessivo e incompreensível que já nem me lembro de tudo.

Mas isto para dizer que ele, sempre tão extrovertido, tão franco, tão conversador, falava de todos estes dramas e, no entanto, nunca conseguiu falar dos seus tempos de guerra. 

Um colega dessa altura disse-me uma vez que ele esteve na zona mais difícil da guerra, que sofreu muito, muito, muito,, que esteve dias numa vala com amigos mortos ao lado, que, até que o fossem salvar, viveu uma situação limite de fome, sede, medo e muito ansiedade. Uma vez, perguntei-lhe se o que se dizia sobre o que ele tinha passado era verdade e se queria falar sobre isso e ele imediatamente ficou com o semblante fechado e disse apenas: 'Não'. 

Um outro, mais aberto e que dizia que nunca se deve perguntar a alguém que esteve na guerra se matou alguém, também nunca quis falar. 


Talvez por isso, me impressionou o vídeo abaixo. Talvez porque Volodymyr Demchenko está a falar do que está a viver, em cima do acontecimento, sem distanciamento, ou talvez porque, enquanto combate, está também a registar o que vive e o que vê, consegue dissociar-se o suficiente das suas emoções para conseguir falar do que sente. 

Tenho pena, claro, que não haja legendas em português mas, ainda assim, não posso deixar de partilhar.

‘Terrifying’: Soldier describes encounter with Russian fighters

CNN's Erin Burnett talks with Volodymyr Demchenko, a Ukrainian filmmaker and soldier, about what he is seeing on the ground amid Russia's claims of scaling back forces. 

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Fotografias da destruição ucraniana às mãos do assassino Putin provenientes do The Guardian ao som do Hino da Ucrânia em que se vêem os gémeos Klitschko, presenças tão corajosas na defesa da sua cidade e do seu país, um dos quais agora presidente da câmara de Kyiv

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E queiram descer um pouco mais caso queiram ver um vídeo do mais maluco que há

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Desejo-vos um dia bom
Esperança em melhores dias. Saúde. Força. Paz.

1 comentário:

Portuguesinha disse...

Acho que te referes à parte final da entrevista dele, em que diz que nem sempre será o "cavaleiro branco" o herói, por estar a defender o seu pais. Guerra é matar pessoas. É destruir lugares. Não se pode sentir um herói por se fazer isso.

parece-me obvio. A guerra é má. Dizer que uns são bons outros são maus não passa de um subterfúgio para ajudar um soldado a fazer o que tem a fazer. E o que tem a fazer é errado pelas leis da natureza. É matar o semelhante.

Ninguém quer falar sobre ter de fazer isso.
Faz parte de qualquer perda, mesmo perdas de outro género.

Este soldado fala porque está a viver agora a experiencia. Mas principalmente porque é um documentista. Nesta era tecnologica e mais fácil falar destes assuntos porque ja não é preciso estar lá para se entender. Não totalmente. Tudo fica registado em video, tudo é filmado e discutido e divulgado. Fica mais fácil uma pessoa se abrir, embora acredite que nunca o faça totalmente.