sexta-feira, junho 18, 2021

Noah

 



O dia esteve quase invernoso: húmido, fresco, cinzento. A meio do dia constatei que não estava tão bem quanto desejava, e isso deixou-me um bocado desiludida. E uso a palavra desiludida em consciência: se calhar estava mesmo a querer iludir-me. Nada de transcendente mas, ainda assim, fiquei aborrecida. Sou tão optimista que desvalorizo até o que possivelmente tem mesmo que ser valorizado. 

Portanto, com o dia soturno, com a minha disposição também cinzenta, para piorar só mesmo o suspense em torno de Noah. Sentia-me um pouco ansiosa com aquilo do menino. 

Tenho total pavor do desaparecimento de uma criança. Desde que tive os meus filhos, na praia nunca conseguia estar um segundo descansada: sempre a olhar para um e para outro, com medo de perder algum de vista. Nas feiras ou em lugares com mais gente, sempre a querer que me dessem a mão, sempre com eles no meu radar. O que me tranquilizava era que o meu marido era igual, sempre absolutamente focado neles.

Com os meus netos, a preocupação é a quintuplicar. São muitos, mexem-se muito, difícil andar sempre a verificar: um, ouro, outro, outro, outra. E voltar ao princípio: um, outro, outro, outro, outra. 

Uma vez, apanhei um susto de morte. Digo bem: de morte. Era como se me sentisse a morrer por dentro. A minha filha tinha ido dar uma volta na Feira do Livro e eu e o meu marido ficámos com os dois meninos no pequeno parque infantil que está ali ao lado. O parque estava pejado de crianças e respectivos adultos acompanhantes. Cada um dos meus corria para seu lugar: um para o escorrega, outro para o balouço, depois um subia ao parque dos piratas, depois outro também. Eu e o meu marido aflitos para não os perdermos de vista. Depois ficaram os dois no barco dos piratas. Mas aquilo é grande e tem vários acessos, e, lá em cima, tem a casinha, tem o varandim, e tem não sei o quê. Como eles eram pequeninos, estando lá em cima, a gente não os via. E se um descia pela escada, outro pelo escorrega, cada um por seu lado, ficava impossível segui-los. Dezenas de crianças, dezenas de adultos, uma confusão. Eu deveras assustada, com medo de não conseguir estar sempre a saber onde estavam. Às tantas, o meu marido disse: fixa-te num que eu fixo-me no outro. Só que, de repente, um estava cá em baixo e o outro não aparecia. Perguntámos ao mais crescidinho, que deveria ter uns cinco anos, o que era feito do irmão. Disse que não sabia e foi a correr para outra atracção. E aí foi o pânico. Eu e o meu marido, aflitos, a chamar pelo mais pequeno, às voltas, sempre a querer não perder de vista o mais crescido que não parava sossegado. Eu, juro, só me mantive de pé e a chamar pelo pequenino porque a vontade de o encontrar superava o que o meu corpo queria, que era que eu caísse ali, desmaiada. Não há explicação para o pavor ao pensar que ele tinha fugido, se tinha perdido, que alguém o tinha levado, que ia aparecer ao pé da minha filha com uma criança em falta. Não há mesmo explicação.

O que nós gritámos por ele, as voltas que ali demos, jamais me esquecerei. E, de repente, já não sei qual de nós, olhámos para trás de nós: estava ele, num cavalinho, impávido a sereno. O cavalinho era mais recuado, não sei, não sei como não o vimos.

Não há descrição para o alívio: renasci. Perguntámos-lhe: mas não ouviste chamar por ti? Era pequenino, teria uns três anos, estava na boa, feliz da vida. Não ligou patavina.

Quando contámos, a minha filha ainda se riu: o miúdo mesmo ao pé de nós, provavelmente, sem perceber que desatino era aquele em que os avós estavam e nós, feitos totós, num desespero como se o miúdo não estivesse mesmo ali atrás.

Mais recentemente, apanhei um susto idêntico. O meu filho estava cá em casa. Os adultos conversavam e os miúdos brincavam. Corriam, brincavam às escondidas -- andavam à vontade. Até que os mais crescidos resolveram ir-se embora e tocaram a reunir. E, ao irem, reparámos que o portão que dá para a rua estava aberto. O comando é muito sensível e, sem darmos por isso, o portão abriu-se. Há quanto tempo o portão estava aberto não sabíamos. E aí demos por falta do mais novo. 

Aflição, claro. Pânico, pânico. Todos a chamar por ele, dentro e fora de casa, todos a corremos por todo o lado, o meu filho já na estrada a gritar por ele, os irmãos, em especial o menino, a chorar, aflito, eu outra vez mais morta que viva, sem saber onde mais procurar. Na rua sem sinal dele, o meu filho já para a frente e para trás, já bem assustado.

E, de repente, uns sapatinhos a saírem de debaixo de um arbusto, ali mesmo ao pé de nós. A minha nora é que viu. 

Tinha-se escondido de tal maneira, o maroto, que não o víamos. Só daquele ângulo se viam os pezinhos. E de lá saiu, sorriso maroto, sacaninha. Nós em pânico e ele, feliz da vida, por estar a pregar-nos tamanha partida. No fundo, para ele, nada de mais. Costumam jogar às escondidas em que é suposto, justamente, esconderem-se bem e não se auto-denunciarem. 

Passado não sei quanto tempo ainda eu me sentia a tremer por dentro. Agora ando sempre com medo que o portão se abra. Aliás, passámos a ter mil cuidados com a porcaria do comando. Quando eles cá estão, é o meu marido que o usa e resguarda logo de seguida para evitar que algum toque ou queda ao chão leve a que o portão se abra sem que nós demos por isso. 

Ou seja, por todos os motivos e mais uma data deles, a perspectiva do desaparecimento de uma criança é daqueles terrores em que não quero nem pensar.

Por isso, de cada vez que sei que uma criança desapareceu, por muito remoto que seja o acontecimento e por muito alheio que o assunto me seja, sinto logo aquela angústia que imagino que a família sinta. Angústia, pavor, impotência.

Mas, depois, ao procurar se já havia notícia, vi a fotografia de Noah e pensei: está vivo. Pensei também que pensamentos assim são gratuitos, infundados. Mas, no meu íntimo, pensava que, apesar de não ter explicação para tão clara convicção, sentia que aquela criança estava viva e que seria, toda a sua vida, um bacano, alguém cheio de peripécias e histórias para contar. Vivo, pensava, está vivo.

Desconheço as circunstâncias do seu desaparecimento e do seu aparecimento. Mas fiquei muito contente quando, estando ao telefone com a minha filha, ela me disse que estava a ver, não sei onde, que o menino tinha aparecido. Senti aquele alívio solidário, como se fosse também eu a recuperar a tranquilidade de saber que a criança está de volta, viva e de boa saúde.

Claro que agora haverá que perceber o que aconteceu e se está bem. A vida no campo, em especial entre pessoas que vivem em comunhão com a natureza, não segue a mesma lógica de quem vive em meios em que os receios são constantes. Mas, enfim, o que houver a ser apurado, certamente sê-lo-á. Para já, o que importa é que Noah está vivo e junto aos seus. E essa é uma alegria que tem que ser festejada.

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Pinturas de Luis Rodriguez Noa ao som de Alice por Bernardo Sassetti

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Desejo-vos um dia feliz.

Saúde. Ânimo. 

E ao valente Noah desejo uma vida longa e feliz

8 comentários:

Paulo B disse...

Olá UJM!

Nessa situação do menino, esperemos que não venha a polícia urbana fazer uma campanha de bons costumes sobre o acompanhamento de crianças para lá dos.muros da cidade.
É como diz, uma forma de interagir com o espaço, com o meio ambiente, com o território, radicalmente diferente. E mesmo assim já se perdeu imenso.

Cresci com os meus avós. Agricultores. Que me levavam para as terras e que, naturalmente, iam fazendo atividades agrícolas que desviam a sua atenção. Ficava em razoável liberdade para explorar o espaço.
Essa liberdade era temperada com histórias e fábulas, que se alguma forma contribuíam para inibir um pouco o risco que temos, quando crianças, vontade de correr.
Lembro-me de quando era miúdo, talvez uns 5 anos, ter arriscado um pouco mais na exploração dos terrenos em volta e de repente perdi-me. Os meus avós aflitos ainda procuraram por.mim. encontrou-me a minha bisavó. Estava já eu razoavelmente assustado e lembro-me ainda hoje desse momento. É talvez a única imagem em que ainda relembro um pouco o seu culto curvado, as roupas totalmente pretas do luto que carregava desde nova, os pés descalços.
Que se investigue, mas que se seja ponderado nas acusações e nos julgamentos.

PS: olhe, e muita força para essas coisas que a têm atormentado. Com certeza que tudo ficará bem. Até lá, muita força! Deixo-lhe a magnífica voz da Sílvia Perez Cruz (que anda por cá a dar uns concertos magníficos, mas volta em Novembro com uma paragem no CCB). Ao vivo é muito.mais magistral a sua voz!
Opto por esta - um cover curiosamente - mas que é lindíssimo (e adequado aqui): https://youtu.be/AYyR0FOUXDE

Abraço!

Anónimo disse...

O dos afectos já telefonou ao menino?

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Eu a mim arrepiam-me as logicas de certos pais e de certos meios face às crianças, nomeadamente a rédea solta e a confiança com laivos de omnipotência de que nada acontece, porque o lugar é sossegado, porque a criança é esperta e está habituada.

Vejo pelos meus miúdos da catequese, como já tive umas fugidas meias sem noção em direção à rua, que tem algum movimento pois situa-se junto à Praça, é porta da rua trancada até à hora dos pais chegarem para buscá-los.

Quanto aos "pressages", a minha mãe socorreu-se do Responso ao Santo António e também manteve sempre a ideia de que o menino estaria vivo, o que felizmente veio a confirmar-se.

@18:21 - Essa é boa! Agora deve andar mais entretido com a bola...

Um bom serão.

Um Jeito Manso disse...

Olá Paulo,

Quando se está no campo, entre gente de bem, tende-se a achar que tudo é paz e liberdade e que não há mal que se aproxime. Mas, de facto, há riscos e nunca se deve subestimar a capacidade das crianças fazerem, num pequena fracção de tempo, algo que os possa colocar em situação de insegurança. Mas tem razão: não se pode olhar para os outros à luz da nossa maneira de ser e das nossas circunstâncias. Neste caso, será sempre prematuro dizer alguma coisa sem se saber o que se passou ou fazer julgamentos sem compreender a cultura e as vivências daquelas pessoas.

A única coisa que, penso eu, podemos fazer é dar graças pela resistência e sorte do pequeno Noah.

Ao ler o que aconteceu consigo, lembrei-me do que aconteceu com a minha mãe quando tinha dois anos: foi com o que viria a ser meu tio, mais velho que ela seis meses, e com outro menino. Foram os três pelo campo até que se perderam. Foram descobertos horas depois, as famílias em pânico.

No campo, em liberdade, as vivências são intemporais.

Olhe, outra coisa, Paulo: gostei muito da música que me ofereceu. As suas escolhas têm sempre esta particularidade: são pouco óbvias e revelam sempre um gosto sofisticado e incomum.

E obrigada pelos seus votos. Tomara que sim, que tudo corra pelo melhor comigo. Tenho esperança que sim.

Um bom sábado, Paulo.

Um Jeito Manso disse...

Olá, Sr/Sraª Anónimo/a

Não me admira é que se apresente lá, lá mesmo, em casa dos pais de Noah e que, de lá mesmo, mande beijinhos e abraços a todos, aproveitando para fazer selfies com as vizinhas, quiçá até com a cadela.

Não me admiraria, mesmo, que se cruzasse lá com a Cristina Ferreira e que aproveitasse a ocasião para mais uma entrada em directo no programa da mercenária guinchadora.

E obrigada pela ideia, muito bem lembrada.

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

É sempre um equilíbrio não muito fácil de obter pois a fronteira entre a liberdade e negligência, entre o cuidado e o proteccionismo, não é fácil de traçar.

Para quem vem da cidade, das cidades, de outros países (como parece ser o caso dos pais de Noah), em busca de tranquilidade e contacto estreito com a natureza, há um forte apelo a favor da confiança ilimitada na protecção da natureza.

Claro que depois, quando acontece uma destas, toda a gente ganha outra consciência dos reais riscos e acredito que a casa não volte a ficar de porta aberta enquanto os pais não estiverem acordados e a tomar conta dos filhos.

E vai daqui um beijinho para sua Mãe: também eu sou muito dada a gostar de ter o Santo António por perto. É um Santo muito cá de casa. Se manhã me lembrar, fotografo os meus Santo-Antoninhos.

Um bom sábado, Francisco. Bom descanso e boa diversão.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Obrigado, UJM.

Um beijinho também para a UJM da minha mãe.

Fortografe, fotografe, quero ver 😉

Um f.d.s. revigorante e animado também.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Obrigado, UJM.

Um beijinho também para a UJM da minha mãe.

Fortografe, fotografe, quero ver 😉

Um f.d.s. revigorante e animado também.