sábado, maio 01, 2021

A condição de estar em casa

 



Sei que, perante tanto problema sério, se falar que estou decepcionada vai soar a fome de barriga cheia. Acontece que. Quando, há mil anos, comprámos esta casa, que era escura, triste e sem vida, olhei para ela e vi-a como poderia ficar se a abríssemos ao sol, se lhe retirássemos aqueles móveis altos e escuros que a atrofiavam e se a rodeássemos de árvores. 

E foi o que fizemos: o móvel enorme que cobria uma parede foi arrastado para a despensa e logo a sala se encheu de claridade. Aos poucos tudo foi ganhando a alegria e a luz que gosto de ter em casa. 

Mas uma coisa detestei desde o primeiro instante... e ainda persiste. As paredes eram, e são, rústicas, irregulares. Não é a vulgar tinta de areia, é muito mais que isso, é o verdadeiro paraíso para as aranhas esconderem as suas teias. Contudo, desde sempre disseram que era complicado estucá-las. Portanto, foi ideia que foi sendo adiada. 

Até que este ano meti na cabeça que era desta. Já chega. Quero paredes lisas, limpinhas. O meu filho dizendo que era um disparate, uma chatice, um trabalho enorme e uma sujeira, um dinheirão, sem qualquer justificação. Bem tentei explicar que a justificação é estética. Não gosto destas paredes. Agora que escrevo, olho em volta. São imperfeitas por natureza. O meu filho diz que contrate uma lavagem geral de paredes todos os anos. Mas lavar como? Só com escova. E na semana seguinte já uma teia há-de estar presa das suas rugosidades. O meu marido, nestas coisas, arranja soluções impossíveis. Pladur. Cobrem-se de pladur. Aborreci-me: qual pladur? Baixar o tecto? E encurtar a casa? E os painéis de azulejos? 

Imaginei uma coisa simples: passar reboco ou lá o que é, alisar, estucar. Não estava a perceber tanta complicação.

Pois bem. Ontem veio o pintor. Julgava eu que o pintor trataria do assunto. Não senhor: pintor pinta. Quando lhe falámos em alisar as paredes, disse que ia ser complicado. O mestre de obras que o acompanhava disse que conhecia um, habilidoso, sabedor de uns materiais especiais. Esse um veio cá hoje. Olhou em volta, mostrou desconforto. Muito trabalho, muito complicado. Que nos tectos o melhor era pladur. O meu marido, fez um olhar castigador na minha direcção como  querendo mostrar quem é que tinha razão.  Ignorei. E perguntei ao conhedeor: quantos centímetros rouba? No mínimo, cinco centímetros, disse o senhor habilidoso. O pé direito já de si não é extraordinariamente alto. O meu marido disse que sim, eu disse que não. O senhor desenhou a casa, mediu, fez cara de preocupação. Vai mandar o orçamento mas diz que não vai ser trabalho para menos do que quatro semanas, não percebi se dois ou três homens. E que o melhor era fazer por fases, que faz muita poeira, que tem que se tirar tudo. 

Enquanto o ouvia fui percebendo que só há uma solução: esquecer. Ainda não vai ser desta. Há-de ficar assim para todo o sempre, pelo menos enquanto formos nós a tratar da casa.

Fico verdadeiramente desolada. Tinha imaginado a casa toda de novo, as paredes em acetinado, meio-brilho, a luz suave reflectida. Agora nada reflecte.

Havemos de pintar, pintar as portas e rodapés de branco, os tectos e corrimãos das mezzanines serão brancos, irei substituir o 'guarda-fatos' do meu quarto por um roupeiro branco, irei desfazer-me da cómoda ou pintá-la, iremos substituir as antigas janelas de madeira por janelas brancas com muito maior isolamento térmico (e acústico, o que aqui não é tema). E tenho vontade de colocar a mesa da cozinha lá fora, sob o telheiro, e na cozinha pôr a sala de jantar e, em vez desta, colocar uma grande mesa branca. Mas isto é dúbio. Não sei se na sala de jantar, fica bem mobiliário branco. O meu marido não ajuda. Diz que eu não sou capaz de estar sem dar trabalho aos outros, sendo que os outros aqui se resumem a ele. Portanto, recusa-se a opinar, creio que na esperança que eu acabe por desistir.

Tirando isso.

Trabalhei até às seis e picos. Fui, então, buscar areia lá abaixo. Sobrou de algum arranjo e os homens fizeram um monte lá em baixo. Fui com o carrinho buscar. Tinha trazido as suculentas para plantar no chão e nos canteiros que estavam sem nada que se aproveitasse.  Com um sacho, cavei, abri buracos. Entretanto, deu-me o calor. Despi a camisa e fiquei apenas com um top fininho de alcinhas e nada por baixo. Nada por baixo, quer dizer: na parte de baixo tinha umas calças fininhas, na parte de cima é que estava à verão a sério. E estava frio. Mas a cavar, a carregar areia à pazada, a vir ladeira acima a puxar o carrinho, deu-me vontade de tirar tudo e eu, já sabem, sou como a outra: tiro tudo em qualquer lugar.

Já eram sete e tal, pensei que o tal habilidoso já não vinha. Andava, pois, à vontadinha, na jardinagem. Como andava também com a mangueira, com o barulho da água, não dei conta. Quando dei, estavam os dois ao portão... e eu naqueles preparos. Fui a correr para casa, para vestir um casaco e pôr-me decente, para pôr  máscara. Volta e meia sou apanhada nestas actividades e com os mais variados e reduzidos outfits. O que é que eles dirão de mim...?, pensava eu em voz alta. O meu marido tinha a resposta: 'Não devem dizer nada, já sabem que és maluca'.

Será? Será que pensam? Será que sou?

Não faço ideia. Só sei é que me custa resignar-me com esta porcaria de paredes, custa mesmo, ao fim deste anos todos a julgar que era desta e... afinal, acho que ainda não. O que me vale é que, para onde quer que olhe, só me ocorrem oportunidades de melhoria. Ando de fita métrica em punho, mudo as coisas de sítio, equaciono mudanças maiores. E é disso que eu gosto: de mudanças.

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Antes de ir dormir na cama (porque, enquanto escrevo, estou a dormir, aqui, no sofá), partilho a casa de Gilberto Gil e Flora Gil e, abaixo, a casa de uma das filhas, Bela Gil. As casas, pela amostra, são um caso de amor para o clã Gil.

Para mim, também.




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As fotografias mostram imagens que as pessoas estão a enviar para Cozy Places

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E sobre o Dia do Trabalhador deste ano só tenho a dizer que acho uma lástima que, quando calha ao fim de semana, não o passem para a segunda-feira seguinte.

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Um belo dia para si que está aí, desse lado, a fazer-me companhia

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