quarta-feira, abril 28, 2021

Os invisíveis

 

Na rua em que eu vivia apareceu um jovem com bom ar que ajudava os condutores a arrumarem os carros. Os lugares eram largos, não havia dificuldade. Ninguém precisava de ajuda. No fim pedia uma moeda. Nunca lhe dei. Uma vez enchi-me de coragem e disse-lhe que ele deveria ir ao centro de saúde pedir ajuda, que não deveria habituar-se a uma vida assim, que seria aconselhado e teria tratamento. Ficou estupefacto a olhar para mim. Nunca mais me estendeu a mão. Contudo, sempre fiquei na dúvida. Será que dizer isto a uma pessoa que vive de esmolas faz sentido? Era alcoólico. Andava sempre embriagado e com uma garrafa de cerveja na mão. Não sei se também se drogava. Mas deveria ter também a sua dignidade. E não sei se o que eu lhe disse lhe soou a uma vontade de ajudar ou a uma ingerência escusada.

Depois deixou de aparecer. E voltou a aparecer, cada vez mais debilitado, mais aos tombos. Depois desapareceu. Depois voltou a aparecer à porta de um supermercado, o cabelo a escassear, o rosto a mostrar a erosão dos excessos, sentado, encostado a uma parede, o boné no chão para recolher esmolas. 

Não imagino o que seja o sofrimento de uma mãe que tenha um filho que leva uma vida de autodestruição, que viva aos tombos, aos caídos. Não consigo imaginar.

Uma vez vi-o a sair de uns escombros. Ele e uma mulher escanzelada, cabelo quase rapado, sem dentes, com aspecto de ser mais velha que ele. Mas não se sabe. A rua estraga a saúde, envelhece. Ambos aos tombos. Iam a andar à pressa, como que a querer fugir mas tropeçando, quase caindo, um esperando pelo outro. Uma tragédia. Provavelmente viviam ali. Nunca me passaria pela cabeça que ali, por entre ruínas, pudesse viver outro ser vivo que não gatos ou pombos. 

Mas viver sem tecto não é apenas o destino de quem se vê à mercê de vícios, incapaz de uma vida entre família. Distúrbios mentais, pouca sorte, acasos, falta de chão quando a vida prega uma rasteira, desgostos destruidores, ausência de um amparo no momento em que ele mais é preciso -- tantas razões.

São os invisíveis. Os indesejados. O incómodo a céu aberto. Podemos vê-los sob os viadutos da cidade, em casas improvisadas com cartões, podemos adivinhá-los quando vemos cobertores, sacos, em alpendres ou escadas. De noite acolhem-se e, antes que o dia amanheça, desaparecem sabe-se lá para onde. Invisíveis.

Gente como nós.

Michael

Feliz. Perdeu os dois filhos. Perdeu o irmão. Tem um cancro em fase avançada. Sorri e diz-se feliz.


Michelle

Diz que o ex-marido é um homem rico. Vive na rua. Teve AVC´s. Diz que vai levantar-se.


Dakota tem 29 anos. Saiu de uma relação abusiva. Quando saiu de casa, o marido deu os filhos para adopção. Sente muita falta dos filhos.


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Desejo-vos um dia feliz

2 comentários:

Fátima disse...

Peço desculpa, este comentário é relativo ao post anterior, e é curtinho. Não tente pôr rouxinóis na gaiola, morrem. Não suportam estar presos.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

A saúde mental é das maiores riquezas que podemos ter e facilmente ignoramos os sinais de alerta daqueles que nos rodeiam.
As dependências são um caminho que subverte completamente a hierarquia motivacional, viram as pessoas do avesso.

Um rico dia para a riqueza!