sexta-feira, janeiro 22, 2021

Covid -- previsões, apreensões.

Contra isso, falo com as árvores.
E vejo como se voa e encanto-me com a toada das palavras.

 



Quando se tem na família quem esteja ligado ao sector da saúde parece que as notícias chegam mais depressa e que, antes de as coisas serem notícia, já a gente antecipa os problemas que estão por vir. É preciso desligar um pouco para não ficarmos mentalmente reféns dos problemas presentes e futuros. Acresce que, quando temos um certo gosto pelos modelos, mal a gente vê uma sucessão de números, logo a intuição desata a fazer contas de cabeça. 

Depois chegam as notícias. E a gente vê que o que os profissionais de saúde temiam e o que os números antecipavam já aí está. E a gente vê as curvas que sabe serem temíveis e pensa que as rédeas já não estão na nossa mão. A besta anda à solta.

Antes, por alturas do verão e outono, eu dizia: 

Isto é fácil, há um limite: o número de vagas nos cuidados intensivos. É o fim da linha. Sabendo-se qual a percentagem estatísticas dos que chegam a esse ponto de gravidade, é fácil calcular qual o número máximo de infectados que o sistema comporta (não esquecendo, claro, de levar em linha de conta o tempo médio de permanência de um doente ali internado e a velocidade de crescimento do contágio). Sabendo esse número máximo, vai ser fácil saber o ponto em que o travão de mão tem que ser puxado. Confiava eu.

Fui pesquisar a caixa de correio e vi que foi no dia 12 de novembro que um leitor me escreveu a dizer "Li agora o que anda a escrever nos últimos tempos e fiquei preocupado. Não pode deixar que esta intoxicação de estatística diária a afecte dessa maneira.". Pois é. Por essa altura, eu andava preocupada pois achava que se estava a levar tudo na boazinha, achava que não estavam a perceber os riscos que estavam à espreita, achava que estava à vista que a desgraça ia chegar. 

Se, ainda por cima, temos agora esta nova estirpe, mais acelerada, então o que posso dizer é o óbvio, o que toda a gente sabe, é o resultado que está à vista: muitos doentes não vão ter lugar nos cuidados hospitalares. O número de mortos vai aumentar não apenas em números absolutos mas, também, em números relativos. Se no hospital há lugar para acolher diariamente x doentes e na realidade há x+Δ à espera, então há fortes probabilidades de haver um acréscimo de cerca de pelo menos Δ mortos x nº de dias em que há sobreprocura.

Mas, com estas preocupações e estes raciocínios em mente, chega-se a um ponto em que já custa ver as notícias pois vê-se acontecer aquilo que achamos que teria sido possível evitar e percebe-se que agora, com os limites ultrapassados e com variantes novas em campo, é tarde demais. Muitas vidas se vão perder e muito sofrimento não vai poder ser evitado. E se isso, matematicamente falando, é o mero resultado de meia dúzia de cálculos, já do ponto de vista humano é um traumatismo profundo, uma dor para quem passa por ela, um medo para quem assiste.

Claro que a matemática pura só existe em laboratório, em salas bacteriologicamente limpas. É que há tudo o resto: os constrangimentos sócio-económicos, as pressões políticas e mediáticas, as confusões que muitos opinantes causam. Os governantes não são cientistas em laboratório. São pastores de rebanhos desgovernados no meio de contextos poluídos. Muito difícil ser governante numa altura destas. Não os crucifiquemos. Não quereríamos estar no lugar deles.

Mas, confesso, talvez porque tudo isto me custa, já estou a atingir o ponto de saturação. Por exemplo, não consigo ter paciência para quem convida pessoas para estarem presentes em estúdio para uma entrevista e, mal se apanha com o poder de fazer perguntas, desata a portar-se como um inquisidor-mor, um julgador sumário, um bárbaro castigador. Convidar um governante é algo que faz os entrevistadores terem impúdicas erecções e, acto contínuo, passarem à fase da violentação das indefesas vítimas. Com o poder de conduzir a emissão e a entrevista, agridem, fazem sorrisos de gozo, investem como umas bestas. Uma coisa a que se assiste com repulsa -- isto quando se consegue assistir. 

Assim, em televisão já só consigo assistir a programas em que o entrevistador se porta razoavelmente, por vezes como pessoa de bem, e os entrevistados estão ali não para apontarem o dedo a quem fez assim e devia ter feito assado mas para explicar o que, para a opinião pública, não é claro ou, então, a darem perspectivas para o futuro. 

Por exemplo, assisti a uma parte da entrevista que José Alberto Carvalho fez ao Secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales. Este, com uma calma olímpica e a paciência de um santo, conseguiu aguentar os ímpetos censores e punitivos do jornalista. Do que vi, a entrevista, por responsabilidade do mau entrevistador, nada acrescentou. Pelo contrário, incomodou. Em contrapartida, Vítor Gonçalves, na RTP3, fez boas e úteis entrevistas a médicos que estão no terreno, um a norte, Roberto Roncon, outro a sul de que não fixei o nome, ao belo Pedro Simas e a Carlos Antunes, matemático. A decência e o profissionalismo começam a ser coisas raras em televisão.

Durante o dia não vejo televisão e à noite pouco vejo. Durante o dia não tenho tempo e, à noite, saturada, já pouco suporto.

E tudo isto é para mim também um enigma. O tempo passa sem que eu consiga fazer qualquer outra coisa senão trabalhar e existir. Em tempos -- que me parecem longínquos -- eu tinha tempo para me aperaltar, deslocar-me de carro pela cidade, trabalhar, almoçar em restaurantes, ir a livrarias ou lojas de moda, trabalhar, voltar a atravessar a cidade ao fim do dia, depois caminhar. E existir. Agora todo o meu tempo pessoal é sugado. Nada sobra. E não encontro explicação para isto. Os dias passam, os meses passam. Caminhamos para quase um ano disto. Se há um ano eu sonhasse com tal, imaginaria que me sobraria tempo para coisas minhas, para ler, para escrever, para descobrir novos interesses. Mas nada. Por vezes olho para mim no espelho e penso que se, passar muito mais tempo assim, ainda me arrisco a começar a envelhecer. Perspectiva excruciante. 

No outro dia, ao falar com o meu filho ao telefone, mostrei alguma preocupação por uma coisa. Espantou-se, incomodou-se, que era aquilo?, preocupar-me com coisas assim até parecia coisa de velha. Calei-me logo. Quando eram pequenos, eles diziam-me que eu não era como as outras mães, parecia muito mais nova. Ainda me lembro de, eu própria, ao falar com outras mães, achar que não tinha nada a ver com o que elas pensavam, achava-as conservadoras, velhas. E, mais tarde, quando conhecia as mães das namoradas ou namorados deles eu, sem querer, achava que elas estavam mais próximas da minha mãe do que de mim. 

Agora, fechada em casa, a trabalhar em contínuo, vendo o tempo a passar debaixo destas ameaças terríveis, sem saber bem como é que isto vai acabar, sabendo de tantos casos, de tantas mortes, sinto que um dia destes, quando der por ela, estou igual às mulheres que antes achava que pareciam da idade da minha mãe. Se calhar é um estado de espírito típico de pessoas confinadas. 

Li um artigo sobre hobbies a que as pessoas se entregam durante estes tempos de fechamento. Com que curiosidade o fui ler. Mas parece que nada me interessa. Procurar vida selvagem e fotografá-la. Por exemplo, pássaros. Ou ir para um bosque e procurar bichinhos. Ir correr com o cão. Assistir a peças de Shakespeare via zoom. Fazer receitas antigas. Fazer uma biblioteca no bairro. Pintar. Ir para o campo escrever. Apanhar folhas e fazer um álbum. Fotografar a mesma coisa ao longo do tempo. Coisas assim. E parece que nada disso me interessa.

Já é sexta-feira. Dantes as sextas-feiras eram dia de coisa boa, passear e jantar na praia, andar perto do mar à noite, o luar reflectido nas águas, a música da rebentação, a véspera do fim de semana, coisa promissora. Agora é apenas mais um dia igual a todos os outros. 

Não gosto de pensar assim nem de me sentir assim. Sinto que estou a ficar aquilo que detesto: uma seca. Não há pachorra. A ver se me ocorre alguma maneira de me sobrar tempo para mim e a ver se descubro maneira de o usar com prazer, de me entreter de gosto com coisa nova, inesperada. A ver se volto a ser capaz de sonhar.


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Para o post não acabar nesta onda down, bora lá:

Não é novo nem a primeira vez nem a segunda vez aqui mas, caraças, apetece-me mesmo ver. Tudo bom. Sergei Polunin dança "Take me to Church" de Hozier, uma realização do fantástico David LaChapelle para uma coreografia de Jade Hale-Christofi


E, por falar em Shakespeare, sem prestar atenção ao sentido, apenas pela toada, pela beleza das palavras

Patrick Stewart lê o 116


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Polvilhando o texto, pinturas de Georgina Ciotti

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Caraças. É sexta-feira. Saibamos aproveitá-la.

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