quarta-feira, setembro 23, 2020

Cá por casa

 



Não me falta o espaço. Essa desculpa já não poderei invocar. 

Tenho este em que agora estou e posso ter ainda mais um ou dois espaços. No jardim, por exemplo, sob o alpendre. Tenho trabalhado lá. Não sei se funcionaria bem como covil de escrita mas talvez. Ou no sótão. 

Aquele espaço que antes, quando aqui vim pela primeira vez, me parecia o espaço ideal, agora não me atrai, acho que é sóbrio demais para mim. É que, mal cá vim já na qualidade de proprietária, com mais vagar e atenção, comecei a achar que o espaço estava a calhar era para o meu marido, com estantes à sua volta para os livros que apenas ele lê (história, história política e/ou económica, coisas nessa base). Contudo, embora já lá tenha as outras suas coisas, usar aquele recanto, usar mesmo, ainda não começou verdadeiramente a fazê-lo. Como aquilo ali é, digamos assim, o escritório privativo do quarto e ele madruga -- enquanto eu sou noctívaga --, quando ele quer começar a fazer alguma coisa, ainda eu estou a dormir. Ainda esta manhã vi que eram seis horas e já não dei por ele, provavelmente já tinha ido fazer a sua caminhada matinal. Horas loucas, as dele.

Mas a verdade é que, sobretudo, ainda estamos a ajustar-nos à casa. 

Agora, neste preciso momento, estou numa secretária minúscula na salinha dos de língua portuguesa, salinha que, para além dos vinte e quatro metros lineares de prateleiras para acomodar prosa e poesia (algumas das quais pertencentes àquelas estantes que tanto me desiludiram e das quais, afinal, agora até gosto), tem ainda, devidamente resguardados de olhares alheios, os meus colares, anéis, brincos, écharpes, carteiras e outros bens de primeira necessidade. A room of my own.

Estou aqui hoje sentada pela primeira vez.  Um dos meninos já aqui teve aulas e gostou. Mas, para mim, é uma première.  Ainda não me pronuncio, tenho que sentir o lugar. No entanto, para testar a qualidade do ambiente, já aqui tenho uma caneca de um quente e saboroso chá rubro (proveniente da caixa dos tesouros que a minha filha me deu pelo Natal), estou a ouvir o canto dos pássaros e, pela janela, vejo trepadeiras, arbustos, flores, árvores. 

Qualquer dos três lugares possíveis cumpre o que me sempre me pareceu essencial: sossego, harmonia. Qualquer deles tem ainda, junto ao poiso em que escrevo, um lugar para me reclinar caso me apeteça ler ou descansar, neste caso uma chaise-longue sob a janela.

Mas subsistem ainda alguns pontos em aberto. Por exemplo, tenho ainda uma dúvida: não sei se deverei estar como estou agora, em silêncio, ou se faria sentido ter música. A nossa aparelhagem é uma das coisas que ainda não veio. É grande, analógica e material: tem um gira discos, um leitor de cassetes, um amplificador, um leitor de cd's, tem colunas separadas. Os nossos LP's e cd's estão encaixotados mas também ainda não vieram. Talvez possamos depois pôr tudo isso no sótão que está decorado como uma sala ampla e multi-funcional, bem agradável. Mas o que imagino para mim, enquanto desse curso à inspiração, seria uma coluninha pequena que contivesse rádio, para poder ouvir a antena 2, mas também outras coisas. Mas uma coluninha não dá para os cds. Aliás nem já o computador dá para cd's. Tudo tende para a desmaterialização.

Isso significa que estamos cada vez mais dependentes de tecnologia, de telecomunicações. Um dia não há rede, não há sinal, o computador avaria e lá ficamos no ar, sem poder fazer nada, totalmente desprovidos de meios físicos para o que quer que seja. Não me agrada, isso. Não sou avessa à mudança mas a verdade é que a sociedade está percorrer este caminho na maior cegueira. Não faz sentido a humanidade estar dependente de coisas que não controla minimamente e relativamente às quais, não tarda, não tem qualquer alternativa. Mas adiante que não é hora nem tenho competência para filosofias. E, para mais, filosofar é capaz de ser bom mas, neste contexto, não me serve de consolo.

Mas, voltando à banda sonora para me acompanhar na escrita, ter que estar a descarregar músicas é coisa que não puxa por mim e para a qual não creio que tenha paciência. Nem é bem paciência, é mais o pensar que ficaria agarrada a obras escolhidas por mim, coisa demasiado limitada. Portanto, para já, se quiser ouvir alguma coisa, tenho o youtube que me vai dando a descobrir coisas que, de outra forma, jamais conheceria.

E, obviamente, isto que acabei de escrever não apenas é contraditório em relação ao que acima disse como revela bem como passivamente vamos aceitando que escolham por nós, como vamos assimilando a ideia de que tudo o que escolhemos, lemos e ouvimos fique registado algures (não sabemos em que condições e por quanto tempo), seja processado e reprocessado (sabe-se lá como e por quem), para daí se inferirem gostos e tendências (sabe-se lá para que fins), sendo-me depois dado a conhecer aquilo que, à partida, já se sabe que vai merecer o meu agrado. Isto tem tanto de fantástico quanto de assustador. E eu só não me atormento mais com esta perversidade porque tenho plena consciência de que estou cá de passagem pelo que o melhor é ir fechando os olhos a estas coisas para aproveitar o lado bom da vida -- natureza, arte, afectos e etc. -- e não viver o resto dos meus dias com a sensação de que um tsunami, do qual obviamente não conseguirei escapar, está a passar-me por cima.

Mas, nisto da escrita, há mais. 

Para que me entregue a sério a qualquer actividade, seja o que for, incluindo justamente escrever, tenho antes que me informar sobre as vias certas para chegar onde me parece que faz sentido chegar. Se pode parecer que tenho uma ideia meio frívola de colocar a questão, a verdade é que também tenho um lado operacional e de gestão que me impede de começar sem ter um plano para chegar ao meu objectivo. Talvez seja deformação profissional: não se investe sem antes se avaliar se vale a pena e se temos meios para lá chegar. Com isto, de escrever, estou na mesma. Sei onde está a parte da matéria prima, sei onde está parte da mão-de-obra mas, para se chegar ao produto vendável, há uma longa cadeia de produção cujo processo, na íntegra, desconheço. Portanto, ao estar aqui hoje não estou senão a ensaiar se o local seria adequado ao desenvolvimento da actividade mineira, extrair alguma coisa de dentro de mim. Chego sempre à mesma conclusão: como quando a gente quer ir para um mercado que desconhece, penso que, também neste caso, o melhor será arranjar quem me ajude. Um agente. Tenho pensado nisso, tenho que arranjar um agente. Mas como, se ainda não escrevi nada? Ou seja, encontro-me sem saber se quem nasce primeiro é o ovo ou a galinha. Dilemas sobre dilemas.

Mas tenho também que ter tempo. Não consigo entregar-me ao que quer que seja sem ser na íntegra. Não posso escrever um bocadinho, depois despachar uns temas, atender umas chamadas, depois mais meia dúzia de linhas, dois mails, uma linha, três team meetings, dois parágrafos. Não dá. 

Mas dá para ir ensaiando, sonhando, divagando. Isto. Conversas soltas, coisas de nada.


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