segunda-feira, setembro 28, 2020

Em dia de pequeno ajuntamento ao ar livre e de máscara, uma pergunta: alguém se prepara para ser velho?
[E, já agora, Van Gogh teve mesmo uma namorada?]

 


Perguntaram às meninas como é que tinha sido. Tinham-se preparado para a velhice? Quem perguntou foi um estudante de medicina, certamente um jovem. Ouvi a pergunta e pensei na minha mãe que, aos oitenta e sete, fala das velhas como se estivessem numa fase da vida da qual ela ainda está longe. E, na família, acho que também ninguém pensa nela como sendo velha. Talvez os meninos, se indagados, ficassem na dúvida e dissessem que se calhar já é um bocadinho velha, mas mesmo só um bocadinho. Velhas são as mulheres acabadas, desalentadas, aquelas mulheres que parece já carregarem a morte às costas. Mulheres ou homens, bem entendido.

Ainda hoje. Fomos buscá-la de manhã. Tínhamos muita coisa para fazer mas nada que ela não acompanhasse: fomos ao Leroy, depois ao supermercado, depois a um horto. Só depois viemos cá para casa. Enquanto eu fazia o almoço, já ela se atirava a um cortinado para lhe subir a bainha. 

Por causa da covid, essa peçonhenta malapata que se arrimou a todos os lugares de todo o mundo, almoçámos debaixo do alpendre. Como o tempo esteve bom, esteve-se bem. Até adiantei o toldo que o sol estava de feição e não apenas encadeava como aquecia para além da conta. 

Logo de seguida, começou o pessoal a chegar. Todos sempre na rua, todos de máscara. E, quando foi o lanche, a mesa grande toda aberta e uns sentados, outros levantados, o pessoal tirou a máscara mas, tirando esses momentos, tudo mascarado. Não se pode facilitar agora que a miudagem voltou à escola. E, para adoçar o lanche, a minha mãe trouxe bolo de cenoura revestido a chocolate que fez no sábado às noite. E trouxe caixas de gamboada para toda a gente -- e que boa está, bela, lustrosa, gulosa, boa, boa. É como marmelada mas melhor. Feita com as minhas bem nutridas gamboas. Comi um pouco de pão de abóbora e nozes com requeijão e um pouco de gamboada -- e é acima de muito bom. (Das calorias a gente fala depois, quando estiver de mal com a vida. Agora é mesmo só para falar do bem que sabe).

E, antes e depois do lanche, a minha jovem mãe já estava a fazer as bainhas num outro cortinado. Por mais que eu lhe dissesse que não havia qualquer urgência, que, quando trouxer a máquina de costura, logo arranja, disse que ia já adiantando e que, depois, logo reforça. Não houve como dissuadi-la. Sente-se bem estando ocupada. E, senhores, como a percebo.

A seguir fomos todos dar um passeio pelas redondezas. Uns de bicicleta, um valentão a correr, outros a pé. De vez em quando encontrávamo-nos e os atletas abrandavam, para retomar o fôlego. E a minha mãe, na maior, a passear, obviamente a pé, mas a acompanhar o passo da malta mais jovem. E sempre na boa, na conversa, jovial. 

De manhã, no horto, escolheu uma flor para pôr no vaso debaixo da escada que dá para o jardim, ao lado do vaso do hibisco. E, quando viu um vasinho com uma planta com umas folhas radiosamente coloridas e me disse 'olha, as tuas avós é que tinham sempre destas flores', resolvi logo trazer. Perguntei: 'Mas é de vaso ou de chão?' e ela disse: 'elas tinham no chão, podes pôr no canteiro das rosas'. E assim será.

Do supermercado, também trouxe uma broa de milho que diz que um entendido em padaria lhe disse que aquela era a melhor que já tinha comido. Portanto, agora que à noite a fomos levar -- como já tinha um compromisso para esta segunda-feira, não deu para dormir cá -- levou a broa de milho, o vaso com as florzinhas amarelas, e mais um saco de gamboas para ela, para o meu tio e para distribuir pelas amigas, e mais um ramo de louro e, ainda, hortelã porque diz que gosta de perfumar a sopa com hortelã. E descobriu que na horta também há lúcia-lima, erva-cidreira, erva-príncipe, salsa e hortelã-pimenta. 

Primeiro foi a mudança, depois as arrumações, sempre tudo à pressão, apenas duas semanas de férias, tudo sempre sem tempo para assentar, e logo depois o recomeço do trabalho, o dia inteiro a trabalhar. Portanto, ainda não houve tempo para andarmos a investigar tudo o que há na horta. Também não somos entendidos, não estamos despertos para o reconhecimento das espécies. 

De ervas de cheiro e chás ainda só tinha identificado a hortelã. Fiquei tão, tão, contente por saber que há lá mais. Ao passarmos por elas pensávamos que eram ervas vulgares. A minha mãe, não, a minha mãe é entendida. E eu já estou desejando ir lá apanhar umas folhinhas para fazer perfumadas infusões

Quando se foram embora, os meus filhos levaram romãs. Figos da índia, apesar de serem óptimos, ninguém se afoitou a levar, aqueles picos são mesmo diabólicos. Viram na internet que, se metidos em água a ferver, os picos caem e, na realidade, ao experimentarem, verificaram que os picos caíram quase todos. Mas não todos, e é coisa em que não dá para arriscar. Aqueles picos são tramados. E os figos, fiquei também agora a saber, são danados de calóricos, mais ainda que os figos normais. Não fazia ideia. Gulosa como sou, tenho andado a comê-los como gente grande.

Os meninos, claro, numa alegria, a jogarem às escondidas, a rirem, a perseguirem-se. Felizes por estarem juntos. Falam muito alto, zaragateiam, brincam, correm, andam de balouço, fazem toda a festa.

E nós com eles. 

Mas, bolas, já me desviei: a questão do post era outra, era a idade. Como é que uma pessoa se prepara para ser velha? 

Mas alguém se prepara para a velhice...? As meninas do vídeo abaixo dizem que não, claro. E se eu perguntar à minha mãe responderá o mesmo. Tal como eu. Tal como os meus filhos. Tal como os meus netos. A gente vai vivendo, um dia a seguir ao outro, todos os dias uma coisa nova, todos os dias a recomeçar. Não precisa de ser nada de especial. Pode ser um pensamento, uma coisa que se lê, alguém que se viu na rua, uma página de um livro, um programa na televisão, um sorriso ou uma palavra. Todos os dias são novos dias. Até que um dia se dá por ela e se percebe que já se viveram muitos dias. Nem percebemos como. E percebemos também que não sabemos se teremos outro tanto para viver. 

O meu marido, nestas conversas, que não alimenta nem lhe interessam, tende a ser fatalista. Fatalista digo eu. Na volta, simplesmente realista. Eu digo muitas vezes que sei lá se não vou viver até para além dos cento e vinte anos. Toda a gente já farta, tudo a rogar pragas, 'estupor da velha que nunca mais desanda' e eu, na maior, fresca e fofa, feliz da vida, cheia de ideias, toda entusiasmada com tudo, como se estivesse a conhecer o mundo pela primeira vez. Claro que, se digo coisas destas, o meu marido nem diz nada. Já está por tudo. Mas é assim que penso, que a vida é uma coisa maravilhosa e que, assim tenha saúde para o festejar, levarei a vida como um deslumbramento inaugural, cada dia uma porta aberta para o dia seguinte. Até um dia me surpreender com algo nunca visto ou sentido e, na maior tranquilidade, mergulhar num sereno mar de luz.


Mas, enfim, não vos maço mais. Estou vidrada nas Avós da Razão e, portanto, é com elas que termino o o post e o dia. Ouçamos o que elas dizem, vejamos como estão tão longe de ser velhas e acabadas, partilhemos o seu gosto de viver.

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August Macke está aqui apenas porque sim tal como a Natalie Merchant também. 
Gosto deles e isso chega.
Tal como gosto de todos os meus Leitores mas hoje, em especial, dos que já não se pode considerar que sejam uns teenagers mas que estão longe de ser velhos.
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Desejo-lhe, a si que está aí a fazer-me companhia, tudo de bom.
Be happy.

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