segunda-feira, agosto 17, 2020

Quando sentimos que encontrámos a casa pela qual aguardámos. Ou que descobrimos uma casa que nos aguardava.




Passei o sábado inteiro a desencaixar e A arrumar. Só nós dois. Há trabalhos que não podem ser delegados. Só nós -- e, em alguns casos, eu -- sabemos onde é para pôr isto e aquilo. 

Almoçámos à hora do lanche e jantámos à hora da ceia. A comida foi sempre a mesma: borrego assado no forno com batatinhas que, em boa hora, tinha cozinhado na véspera de manhã e que veio para cá ainda a ferver, o tabuleiro embrulhado em papel de alumínio e depois numa toalha de praia, dentro de uma sacalhão. Já seria perto da meia noite quando me sentei para descansar um pouco. Mas, mal aterrei, aqui neste sofá, o mesmo em que antes me sentava mas agora numa saleta diferente, adormeci. O meu marido foi para a cama, convencido que o meu sono seria de uns minutos, mas acabei por acordar só depois das duas. Incapaz do que quer que fosse a não ser procurar o caminho para o quarto, acabei por nem conseguir vir aqui descansar a cabeça, escrever qualquer coisa. A minha mãe diz que eu sou de exageros, que quero fazer tudo em pouco tempo. O meu marido há pouco disse-me que eu imprimo um tal ritmo ao que faço que, às tantas, se não descanso, fico esgotada. Ele próprio anda estafado. Talvez tenham razão. Mas a verdade é que me apetece estar descansada sem olhar à volta e ver mil coisas para fazer. A mim o que mais me cansa é ver coisas para fazer (ou, aliás, corrijo: talvez ainda pior seja não ter nada para fazer, razão pela qual, quando não tenho o que fazer, invento e, às tantas, já estou, de novo, a deitar por fora; enfim...).

Este domingo acordei, bem dormida, já eram quase dez da manhã. Abri os estores do quarto, da sala. Não dei pelo marido. Circulei pela casa à sua procura. Fui ao jardim chamar por ele. Nada. Liguei-lhe: tinha ido à cidade buscar coisas à casa antiga.  Temos que esvaziá-la mas falta-nos tempo. Como madruga, resolveu ir buscar mais um carregamento. Entretanto, olhei para o lado e vi as janelas da outra casa com as portadas abertas. Fui à pressa vestir-me. O meu marido está farto de me avisar que uma coisa é morar num apartamento, no último piso, sem vizinhos em frente ou no campo em que, não tendo nós lá outras pessoas, de vivalma só os passarinhos, lagartixas, gatos e etc, e outra, bem diferente, é morar numa casa com vizinhos dos lados ou em frente. Há jardim de permeio mas nada que não se veja. Aliás, no outro dia, creio que talvez na véspera da mudança, quando a casa estava a ser pintada e o pessoal e o pessoalzinho se limitavam ao jardim, estava eu de calçaozito e túnica, olho para a casa do lado e vejo uma senhora a olhar para mim. Quando viu que eu a vi, fez-me um aceno e eu, muito surpreendida, retribuí. A minha filha ficou muito admirada e, sabendo-me míope, duvidou que a senhora me tivesse mesmo acenado. Mas eu acho que sim, juraria que até sorriu. O meu marido também viu a senhora, quando vinha a chegar. Presumo que seja a mãe da dona da casa e que, enquanto a filha trabalha, vem tomar conta dos netos. O meu marido a única observação que teve a fazer-me foi, outra vez: 'tens que ter cuidado com a forma como te vestes'. Se calhar, tenho. 

Ontem, quando estávamos a jantar, eu estava, como quase sempre que ando atarefada, apenas de cuecas, aliás com as únicas que tinham aparecido, ou seja, umas que ele, ao prudentemente preparar um saco com uma muda de roupa, encontrou antes de sair de casa. Umas um bocado fora de contexto. É que eu já tinha guardado as cuecas que entendi serem de trazer. Do resto, das que ficaram para trás, logo hei-de fazer uma escolha. Só que não consegui descobrir o saco com as que eu trouxe e, portanto, dei graças por ele ter tido a brilhante ideia de me trazer aquelas. Mas, dizia eu, estava naquela bela figura, a jantar a lindas horas, as luzes acesas e os estores levantados. E nisto ocorreu-me que se os vizinhos fossem à janela teriam uma insólita visão. Claro que me levantei de súbito para baixar os estores. 

Enfim, todos uns novos hábitos que tenho que adquirir.

Também tenho a dizer que a estante grande que era para ter chegado antes da mudança se atrasou, supostamente chegará com uma semana de atraso. Portanto, parte das caixas de livros não pode ser ainda arrumada: as dos lusófonos não portugueses e as de poesia.

Os portugueses, ficção, estão quase. Fiquei surpreendida com tantos livros que tenho de alguns autores. De alguns não estranho, já mais do que sabia: Eça, Camilo, Aquilino, Agustina, Ferreira de Castro, José Rodrigues Miguéis, Fernando Namora, Saramago, Miguel Torga, por exemplo. Sem espanto. Outros gostei de rever: Abelaira, por exemplo. Mas Pedro Paixão - tantos livros. É tão controverso, ele. Mas a verdade é incontornável: é autor com quem simpatizo, é pessoa de quem gosto. Pode ser meio louco (ou doido varrido, sei lá [deve ser malapata do nome]) mas a verdade é esta: simpatizo com ele. Ao ver a fiada de Pedros Paixão espantei-me. É que uma coisa é a gente ir comprando e ir encavalitando e outra é tirá-los, de seguida, da caixa. Aí a gente vê a extensão do apreço.

Tenho também a dizer que dos 'estrangeiros' a coisa ainda deve ir nos vinte por cento. Uma dificuldade... não há explicação. Caixas empilhadas e encostadas umas às outras. Para descobrir onde anda a caixa que se percebe que falta tem que se andar por cima da pilha, tem que se arrastar caixas ou pegar nelas em peso. Naquelas que foi o meu filho que embalou, pediu à filha para escrever o que se fez para todas, o nome do primeiro e último autor da caixa. Só que a minha menina mais linda escreveu isso, numa bela letrinha, mas em ponto pequeno e na lateral da caixa. Com elas coladas umas às outras, em pilha, tive que me armar em hércules para conseguir levantar e torcer as caixas para conseguir ver que autores nelas se escondem. E as de poesia foram lá parar, não sei como, só mesmo para atrapalhar. Mas para verem a complicação: já ia no Erich Maria Remarque, no Ernest Hemingway, no Ernst Jünger e por aí adiante quando dei com uma caixa que tinha o David Lodge. Lá tive que mudar uma prateleira inteira para encaixar os D's que faltavam antes dos E's. Passado um bocado, quando ia retomar, nova caixa: Doris Lessing e por aí vai. Fiquei parva com a quantidade de Ds que por aí têm andado a escrever livros.   

Enquanto eu andava nisto, andava o meu marido a prender as estantes umas às outras e à parede e a calçá-las. São grandes e vão ficar pesadas, assim é mais seguro.

Estou é ainda em dúvida com as estantes para os livros de arquitectura, que são muitos, ou de arte. A ideia era colocá-las nas estantes que cá estavam, na parte esconsa desta sala onde estão os estrangeiros. Mas só agora vi que parece que as prateleiras são baixas e fundas. Não sei, tenho que experimentar. Hoje, de cada vez que ia tentar avaliar, dava cabeçadas no tecto. Ainda não me habituei a andar numa zona inclinada. O meu marido, então, é num candeeiro que eles cá deixaram, um muito bonito. Não tinham onde pô-lo, perguntaram se eu me importava. Claro que não, fica ali tão bem. Como não sou extraordinariamente alta, é problema que não tenho. Mas já se percebeu que vai ter que ser levantado senão ele e o meu filho vão andar sempre naquilo, sempre à cabeçada.

No outro dia, o Leitor Amofinado estranhava a opção por uma casa construída por outras pessoas. Percebo-o. Mas nunca me senti atraída por uma casa feita de propósito para nós. Apenas uma vez esteve para acontecer, projecto praticamente prata da casa, mas, como contei, não aconteceu. E não me importei, apesar da casa me parecer um espanto. Parece que não me atraem casas novas. Tal como em tudo, sei que não vou descobrir a pólvora, que será estultíce da minha parte pretender que farei melhor que os outros. Porque é que a casa que eu e alguém a meu lado engendrássemos haveria de ser melhor do que outra casa que alguém pensou antes de mim? Acho que há tanta, tanta casa, que me parece absurdo estar a consumir mais recursos a construir uma casa nova. E não é só isso: é que uma casa usada incorpora boas ideias alheias, coisas que outros pensaram e que eu, humildemente, vou poder aproveitar. 

Temos é que saber encontrar a casa que está à nossa espera. É que a escolha de uma casa, como referi, tem que ser como com um qualquer outro amor. A gente tem que gostar logo, tem que gostar de tudo, tem que sentir orgulho nela e em tudo o que a rodeia, tem que querer estar sempre lá, juntinhos, tem que sentir que aquele é o ninho que nos vai acolher forever. Com esta casa foi assim: a minha nora enviou o link, todos pensámos que valia a pena ver, a minha filha disse que achava que aquela, sim, era especial. Vimos, gostámos, eu gostei de tudo, tudo o que via me parecia a meu gosto, nem mais nem menos. O meu marido e o meu filho, com o seu olhar técnico e avaliador, aprovaram, gostaram. Quando saímos da visita, tomámos, de imediato, a decisão: era aquela. Esta. Resolvemos fazer uma oferta em baixa, um bom bocado em baixa. Passado pouco tempo veio a resposta: tinham aceitado. E depois foi o tempo necessário para se tratar de tudo. E, agora que aqui estou, depois das pinturas, depois de feita a parte principal da mudança, o que posso dizer é que adoro andar a surpreender-me com as boas ideias que os anteriores donos tiveram. 

As minhas coisas encaixam aqui às mil maravilhas. Claro que, para que a mudança fosse ainda mais radical, eu ter-me-ia desfeito de móveis e demais tralha e compraria móveis novos, brancos, neutros, simples. Mas, lá está, isso seria daqueles esbanjamentos para os quais não me sinto atraída. Assim, mantive (quase) tudo mas tudo disposto de uma maneira totalmente diferente. De repente, tudo ganhou novo sentido, tudo bate certo, parece um puzzle cujas peças se juntam de maneira virtuosa, parece que, por um qualquer misterioso desígnio, tudo o que adquiri antes se destinasse a poder vir para aqui. A alegria que isso me dá não sei explicar. Parece um renascimento, As coisas renascem e eu renasço com elas.

Claro que há ainda o jardim. Sim, bem sei: amor exigente, requerendo atenção e carinhos. Nestes dias ainda nem tive tempo de sair a desfrutá-lo. Mas, sim, é também uma belezura. Eu não o teria concebido melhor. Pelo contrário, há aqui aperfeiçoamento ao longo de anos. Enterneço-me pensando no carinho com que o conceberam e viram crescer. Logo em frente da porta da cozinha, há um pequeno canteiro onde está uma roseira. A ver se ela gosta de mim. E há um terraço que está coberto por uma buganvília em flor. E sobre o portão, há como que uma trepadeira com coberta de pequeníssimas rosas encarnadas.

Traz-me felicidade, isto.

E é verdade: nesta casa, vou ter um lugar onde escrever. Tomara ter tempo e que as palavras desçam e venham ao meu encontro.

E os meus filhos gostam muito da casa e os meninos, os meninos, então, adoram. Quiseram logo saber onde seria o seu quarto. E eu, vendo a alegria deles, senti que também, de imediato, reconheceram a casa como o lugar de família onde nos encontraremos, onde adorarão estar. Ainda não trouxe cá a minha mãe: ainda não há condições, muita confusão, desarrumação, muita falta de tempo. Mas, no fim de semana, cá a terei. Creio que também vai gostar. Quando viu as fotografias que estavam no site preocupou-se com o chão, diz que eu deveria ter-me informado com a dona anterior sobre o produto que usava para ter um chão tão bonito, receia que não vá eu usar um produto que o estrague. Coisas dela, gosta de se preocupar com problemas que podem acontecer. Nisso é o meu oposto. Também fez duas almofadas para pôr nas cadeiras lá de fora. Ainda não as vi mas vi o tecido. Devem ter ficado bem bonitas. Fico contente. Há sempre muito dela e do meu pai nos lugares que habito e esta casa não vai ser excepção. Aqui ao meu lado, está um pequeno móvel de madeira, com portinhas de vidro, que ele me fez. E é assim que gosto de viver: em casas com vida, rodeada de coisas que têm memórias minhas e dos meus e que, no seu silencioso íntimo, guardam memórias alheias, casas onde gosto que aqueles de quem gosto se sintam bem.

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As flores que iluminam este post foram pintadas por Clementine Hunter e vêm ao som de Motherland na voz de Natalie Merchant

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E eu desejo-vos muita saúde e muita sorte. 
E agradeço as palavras simpáticas de parabéns e bons votos que, por falta de energia, não consigo agradecer individualmente.

3 comentários:

AV disse...

“Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”, dizia Saramago. É tão bom quando assim é.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Eu também quando tenho coisas para fazer não descanso enquanto não acabo.

Essas censuras à indumentária, bah, não é comigo, aqui em casa não há disso e já percebi que a UJM é das nossas, muita descontração também.

Boas arrumações.

Uma bela semana.

Anónimo disse...

A casa é fora de Lisboa, ou em Lisboa?