domingo, junho 14, 2020

Dia de Sto António in heaven





O calendário surripiou-me um feriado. Por pouco poderia ter sido uma semana folgada, com três feriados e, afinal, o Sto António foi calhar-nos a um sábado. Não está certo. 

Mas não fez mal. Se o Dia de Portugal, que, certa vez, o outro evocou como o dia da Raça, foi o dia em que aqui tive a descendência reunida (e digo descendência para não dizer 'os que me são arraçados'), o Dia de Sto António foi o dia em que conseguimos arrancar a minha mãe de casa. O meu filho foi buscá-la logo cedinho e um bocado depois já a carrinha estava aqui a apitar, ao portão. Meia dúzia. Todos de máscara -- e percebe-se. Acabou o confinamento mas não acabaram os cuidados a ter, em especial num espaço fechado como é um carro. E trouxeram carne e peixe e uma caixa de cerejas e uma sacada de carvão. E massa para pão pronta a enfiar no forno. E a minha mãe bolo de cenoura com cobertura de chocolate.


E assim foi que hoje voltou a ser dia de festa. Os primos felicíssimos, uma brincadeira e uma alegria que desconhece distanciamentos. Novas cumplicidades, novos interesses, uma estima que se reforça, uma energia transformada em alegria, inocência e graça.

E há quanto tempo a minha mãe cá não vinha. Espantou-se com o tamanho das árvores. Até eu, que cá estou, me espanto. De vez em quando, dentro de casa, ia dizendo: 'olha, esta mesa que o pai arranjou.' ou, na rua,  'olha, este não foi o banco que o pai fez?'. Numa das vezes, disfarçou mas eu vi. Fiz que não vi. Depois, quando conseguiu falar, disse: 'Fazia estas coisas, ficavam perfeitas'. E é verdade. Aquela mesa tinha sido a máquina de costura de uma das minhas avós. Em vez da cabeça da máquina ele colocou um tampo com azulejos e vidro. Um trabalho difícil que, de facto, foi executado com perfeição. 


Quando se sentou no cadeirão numa das cabeceiras da mesa, reconheceu-o: 'olha, estou a conhecer'. Tinha sido da mobília da sua sala de jantar de quando eu era miúda. Depois trocaram de mobília e aqueles cadeirões foram para casa dos meus avós paternos. Quando o meu avô morreu e a casa teve que ser esvaziada, os cadeirões foram para casa da minha avó materna. Quando ela morreu, eu quis ficar com eles. Mas desde essa altura a minha mãe não tinha voltado cá. 

Eram de madeira escura mas levei-os ao marceneiro de uma aldeia aqui perto e ele limpou-as, tirou-lhes o tingimento. Estão agora da cor original da madeira, mais bonitas. Mas ela reconheceu-os. Disse: 'Olha, o estofo ainda é o mesmo'.


Quando estávamos lá em baixo, no lugar a que chamamos campo de futebol, nós duas sentadas num banco de pedra que está sob uma aroeira, disse-me que se costuma dizer que a vida passa a correr e que isso é mesmo verdade, que não percebe como é que já tem a idade que tem, que ainda lhe parece que não foi há muito tempo que era miúda e que, afinal, a sua vida já está perto do fim. Não disse com fatalismo, disse como uma mera constatação. Respondi-lhe que é bom sinal a vida passar assim, na boa, que a vida é boa quando não se arrasta, quando não custa a passar. Mas disse isso como poderia ter dito outra coisa pois, por dentro, estava a pensar que é mesmo isso, uma coisa absurda isto da vida, uma coisa aparentemente sem grande lógica, a gente saber que vai acabar quando tem ainda tanta vontade de aproveitar o que há de bom para viver. Mas, como o momento não era para filosofias, desviei a atenção para o resto do pessoal que brincava ao 'mata', a tentarem acertar uns nos outros com uma bola, correndo e dando saltos e rindo e, acto contínuo, já nos estávamos as duas a rir, divertidas com as brincadeiras deles. 

Para mim foi um dia ainda melhor porque o almoço esteve a cargo do chef. O meu filho tem mão para a culinária e sai-se bem em grandes quantidades. Tudo no ponto, saboroso, guloso. As sobremesas estiveram a cargo da minha filha que fez tarte de pêra em massa folhada, uma delícia, e um leite creme que também desapareceu rapidamente.


A casa rapidamente ficou com aqueles cheiro bom do pão feito em casa, dos doces com canela, dos assados no forno ou no barbecue. Toda a gente tem um apetite que quase prega rasteiras a quem planifica as doses. Por acaso chegou e ainda sobrou um pouco, quer ao almoço quer ao jantar, mas nada como o que se supunha ao ver a sacada de carne ou o tamanhão absurdo do peixe que eles trouxeram.


No fim, foram apanhar algumas ameixas que já começam a estar doces e depois, já a noite a cair, todos de máscara posta, lá partiu a carrinha. O bebé já coloca a dele sozinho, com mestria, e não protesta, para ele a covid é coisa com a qual facilmente aprendeu a conviver.

A minha filha e os miúdos ainda cá estão a aproveitar mais um pouco a largueza do campo pois se o irmão vive numa casa com jardim onde os meninos podem ter alguma liberdade de movimentos, ela vive num apartamento em plena cidade o que, em teletrabalho e com os meninos com aulas por computador, não é fácil.


Algum tempo depois da carrinha ter largado, enviei uma mensagem a perguntar se estava tudo bem. A minha mãe tinha chegado há poucos minutos a casa, ia lavar-se e enfiar-se na cama. Deve dormir como um bebé tanta a agitação e animação do dia.

E eu a ver se também durmo bem. Prefiro não pensar muito, nem na finitude da vida nem nisto tudo que me espera nos próximos tempos nem no quanto me apetecia poder continuar in heaven, rodeada de flores, de passarinhos, borboletas e lagartixas, nesta santa existência onde tudo é paz e harmonia.


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A todos desejo um belo dia de domingo

2 comentários:

Lúcio Ferro disse...

Olá UJM,
Para a frente é que é Lisboa, já dizia o adágio. Bom domingo e boa semana. :)

" R y k @ r d o " disse...

Além do restante, adorei os detalhes fotográficos.
.
Votos de um domingo feliz
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