terça-feira, novembro 19, 2019

A autofobia ou o medo da solidão: o novo mal do século?




Cedo começámos a fazer festas que incluiam sessões dançantes. Formou-se um grupo que durante anos se manteve unido e, por uns motivos ou por outros, o que interessava era que houvesse pretexto para dançar. Vários rapazes vieram a dar engenheiros e, talvez por vocação, desde miúdos, havia iluminação especial e instalação sonora a acompanhar a selecção musical. Coisa a preceito. Alguns de nós morávamos em moradias que tinham garagens, outros em grandes andares nos quais parte da casa era transformada em discoteca.

Havia um, franzino, apagado, que era muito atilado, filho de figura institucional da cidade, homem distante e austero, e de uma mãe também muito senhora, pais mais velhos do que a maioria dos pais, que viviam numa moradia antiga, solarenga. Contudo, na mais pura contradição dos termos, não apenas arranjou uma namorada mais alta, mais forte e muito mais desempoeirada que ele como organizava as mais desopilantes festas. Em casa da namorada dele, minha grande e divertida amiga, filha muito mais nova de três irmãos, as festas também era à solta. Se a mãe dele ainda aparecia para nos receber e cuidava de arranjar belos lanchinhos para os amigos do filho, aos pais dela nunca conheci. Conhecia os irmãos mas os pais não estavam nem aí. Foi através dela que vieram os primeiros ensinamentos sexuais, os quais ela colhia junto de irmãos e primos.

Outra era a minha melhor amiga. Eram também três irmãos e vários primos. O pai era um bon vivant e a mãe, triste pelo comportamento do marido e cansada pela agitação da miudeza, também se refugiava na sua marquise ensolarada ou numa estufa que havia no jardim e deixava-nos na maior largueza.

Portanto, quase todos os fins de semana havia festa. A partir do que hoje é o décimo ano passámos também a ter os convívios no liceu, supostamente para angariarmos dinheiro para a excursão de finalistas. 


Entre nós, havia vários casais. Eu estava apaixonada por um enfant terrible e ele por mim mas, já o disse várias vezes, éramos tão temperamentais que grande parte do tempo estávamos arreliados, eu a fazer-lhe ciúmes como vingança por achar que ele não me cortejava o suficiente, ele zangado comigo por eu supostamente andar a dar atenção ou a achar graça a outros. Mas, seja como for, éramos empolgados namorados, e de tal forma que nos chamavam o Romeu e a Julieta. A seguir chegou outro que cantava e fazia poemas para mim, deixando o legítimo desvairado. E, entre um e outro, eu não tinha mãos a medir -- emocionalmente falando, claro. Mas isto para dizer que, durante as festas, eu tinha sempre par para dançar. Claro que dançávamos em grupo e sozinhos mas o grande apelo era dançarmos a par, slowzinhos bons, abraçadinhos, a sentirmos como o nosso corpo tinha vontade própria. E mal a música começava, logo um ou outro me vinha buscar para dançar.

Eram outros tempos. Hoje já nada disto faz sentido. Mas, na altura, apesar da nossa liberdade e de estarmos ali por nossa conta, havia o costume de serem os rapazes a irem 'buscar' as raparigas. E havia geralmente duas ou três raparigas que ficavam para o fim. A mim custava-me muito isso. Muitas vezes, estávamos todos a dançar e elas ali sentadas ou encostadas e uns dois ou três rapazes, feitos mongas, de roda da música ou das luzes ou a arranjarem desculpa para não as irem buscar. Doía-me ver como elas ficavam a disfarçar, tentando fingir que não se importavam. Muitas vezes eu pegava naqueles panhonhas e ia eu levá-los até elas. Tirava-me a alegria olhar para elas e pensar que deveriam sentir-se peças sobrantes. Naqueles dias de zanga entre mim e o meu grande e tumultuoso amor, acontecia ele estar amuado e não me vir buscar; e os outros, sem saberem se o campo estava livre, hesitavam e eu, por breves momentos, sentia o que seria a sensação de ficar a sobrar. Nunca sobrava pois, na perspectiva de algum outro se antecipar, ele chegava-se à frente e, se esperava demais, era eu que tomava a dianteira e desafiava algum outro.


No entanto, apesar de ter sido grande namoradeira e de ter sempre um belo grupo de amigos, nunca prescindi do meu tempo. Mesmo nesses tempos de grande euforia adolescente, à noite, depois de estar com os meus pais na sala a vermos televisão, eu ia para o meu quarto e lia até tarde. Precisava de estar sozinha. Sempre precisei de silêncio, sossego, tempo meu, alguma solidão. Mas era solidão voluntária e isso faz toda a diferença.

Uma outra recordação: não gosto de tomar refeições fora sozinha. Lembro-me de quando andava na faculdade. O primeiro ano foi uma seca. Gente marrona, pouco dada a festas, a distrações. Uma tremenda desilusão, aqueles primeiros meses na faculdade. Andando o meu namorado noutra faculdade, quando não conseguia almoçar  comigo -- e não tendo eu ainda arranjado amigos novos -- quando ia almoçar na cantina, acontecia-me estar sozinha. Detestava. Felizmente havia sempre alguém que se juntava e eu acabava sempre por ter companhia. Aliás, foi assim que arranjei um grande amigo, alguém que vinha de um outro mundo, que me trazia vivências para mim totalmente desconhecidas. Passava horas à conversa com ele. Horas. Ouvia-o fascinada. Vivia numa residência, tinha muito pouco dinheiro, pouca roupa e nitidamente roupa pobre, os pais tinham uma pequena mercearia no interior do país, tinha uma irmãzinha pequena de quem gostava imenso e a quem comprava presentinhos para levar quando ia a casa de visita. Emocionava-se quando falava da menina. Tinha uma fotografia dela na carteira, uma menina loura como ele e, como ele, com aquele ar saudável da província. E depois havia aqueles estudantes africanos, negros retintos, com corpos extraordinários, e que tinham uma simpatia desconcertante por mim. E eu achava-lhes graça, achava graça ao que eles gostavam do meu cabelo, achava graça à sua inocência ao virem oferecer-me iogurtes como se fossem presentes valiosos. Por isso, por um ou outro motivo, eu acabava sempre rodeada de gente divertida ou curiosa, a ouvir histórias que me pareciam exóticas.


Mas via pessoas solitárias, sozinhas, a olharem para o vazio. Se por vezes tentava aproximar-me, notava que eram pessoas que tinham alguma dificuldade em interagir. Não me parecia que gostassem simplesmente de estar sozinhas mas, pelo menos parecia-me, não sabiam bem como interagir, faltava-lhes naturalidade. Ficava com a sensação que sentiam alguma timidez, algum embaraço por não terem companhia, mas conviver não era natural para elas.

E assim, por um ou outro motivo, sempre havia pessoas desirmanadas, sozinhas, ar vagamente perdido.

Hoje tudo isto seria impossível: ou porque já não é assim que funciona ou porque todos os instantes são preenchidos com o telemóvel ou com o tablet ou computador. Em qualquer circunstância em que alguém está sozinho, salvo raras excepções, está a ver ou a interagir com um destes dispositivos. Será o horror ao vazio, à solidão, será a necessidade absoluta e permanente de parecer acompanhado, a interagir com 'amigos'. Estar simplesmente a olhar para ontem é coisa que já não existe. 


Mesmo em reuniões, tenho colegas que estão com o computador ligado e sempre a verem qualquer coisa, a escreverem. Dir-se-ia que têm assuntos urgentes a tratar, dir-se-ia que gostam de passar a imagem de alguém a quem os outros ou as circunstâncias não dão tréguas. Mas, sempre que vejo o que fazem, constato que estão simplesmente a manter-se ocupados com tretas que poderiam esperar: ou mails banais ou notícias.

Mesmo em sociedade ou em família o que não faltam são pessoas que, a meio do convívio, estão a ver o que outros postam no facebook ou no instagram, colocando comentários ou smiles. Parece que há a obsessão pela conexão, pelo preenchimento total de cada instante. Na paragem de autocarro, na mesa do restaurante, na sala de espera, na fila de supermercado, mesmo enquanto andam, são raras as pessoas que não estão a ver o telemóvel. No outro dia, alguém estava com ar muito compenetrado, muito atarefado. Quando vi que estava a fazer um jogo de cartas, fiquei estupefacta. Dá ideia que ninguém quer ser apanhado em flagrante delito de solidão


E se hoje estou a recordar cenas minhas ou a referir estes temas é porque li um artigo que achei interessante e cuja leitura recomendo a quem consiga entender-se com a língua francesa. 

(...) ce serait «pour ne pas entendre. Ne pas entendre le vertige qui nous saisit lorsque l’on pense ! Ne pas être seul, c’est ne pas avoir à négocier avec nos peurs, notre culpabilité et notre responsabilité. La solitude impose une posture de lucidité, la lumière crue. Ne dit-on pas "Ne reste pas seul" dans une période délicate ? Être seul est une épreuve métaphysique. Or, nous vivons une période si angoissante que beaucoup ne peuvent plus supporter cette épreuve. Et puis, la solitude n’est pas très instagrammable ! Sauf si on ajoute un plaid, un livre, un chat et un thé chaud !» (...)

São os tempos que vivemos. Vivermos sem internet disponível em todo o lado já nos pareceria coisa  insuportável, própria de desertos e inóspitas lonjuras, ou, então, hábito dos ctónicos, esses seres misteriosos dos quais descendo e que só hoje fiquei a saber que têm este intrigante nome.

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Cá para mim as fotografias que aqui hoje coloquei não têm muito que ver com isto mas também não sei porque haveriam de ter. São da autoria de Terry O'Neill e grande parte delas obtive-as no The Guardian. E vêm ao som do violoncelo de Yo-Yo Ma e da voz de Alison Krauss que tentam aqui introduzir o tema do Natal que, parecendo que não, já por aí anda nas iluminações, nas montras e por todos esses novos lugares de culto. 

Era para ter optado pela Janis Joplin que, para sempre, associarei a essas dias iniciáticos da minha adolescência mas depois reconsiderei: afinal o tema deste post não é sobre essas eternas tardes dançantes mas, sim, sobre um dos grandes males dos tempos presentes, o pavor da solidão -- e, vá lá saber porquê, apeteceu-me condimentar as minhas palavras com um cheirinho a natal.

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E a si, a si em especial, desejo uma feliz terça-feira. 

9 comentários:

Anónimo disse...

Hoje a palavra não é solidãO, é solidáRIO.
Um abraço,
JV

Paulo B. disse...

Estas coisas são um bocado como a velha história do ovo e da galinha, mas... inclino-me para a ideia de que solidão é algo que se tem vindo efetivamente a instalar na sociedade. A forma como (pelo menos nas sociedades ocidentais) nos organizamos socialmente - nas atividades produtivas, no consumo, nas relações interpessoais - constituem formas, cada vez mais, solitárias.
Portanto não estamos num quadro de autofobia ou medo. É uma fuga de uma realidade, dura, cada vez mais instalada. E um quadro de soluções desesperadas (onde nem é possível o discernimento para perceber se este será o caminho).
Talvez a questão não seja a necessidade de reaprendermos a ser solitários mas sim seres sociais.

De qualquer forma, imagino que as festas da UJM poderiam (e poderão!) muito bem ser assim: https://www.youtube.com/watch?v=HlzdCHsaY44 (acho que já deixei isto aqui algures no passado). Eu próprio, para o bem e para o mal, tive o privilégio de viver uns anos nesta outra dimensão (espetador ativo do último suspiro do "baile" como dispositivo de socialização de excelência). No entanto, tenho de reconhecer que a minha personagem era muito a do Jean-François Perrier. :D

PS: Quase que me sinto tentado a sugerir este filme do Ettore Scola como uma demonstração desta tendência solitária na socialização: o percurso de 50 anos de baile ali retratados parecem sugerir isso... das danças coletivas até ao disco sound individual do T'es OK!

Abraço,

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

A capacidade de "estar sozinho" é um sinal de sólida noção de continuidade existencial e identitária, infelizmente há muita gente que se acha o máximo da independência, mas pobres deles se lhes faltam os bajuladores e os ídolos.

Uma rica noite!

Paulo B. disse...

Entretanto, deixou-me a pensar nesta coisa das autofobias e nos medos... da solidão (e não só)... fui à estante e reabri este excelente livro, que vem na linha do que exprimi ali em cima (ainda que não especificamente sobre a solidão): "Dois homens batem à porta. «Bom dia, minha senhora, viemos para instalar o medo. E, vai ver, é uma categoria»." (http://www.ruizink.net/livro/a-instalacao-do-medo/)

Um Jeito Manso disse...

Olá JV,

Quando li o seu comentário, ainda não sabia da morte do Zé Mário Branco pelo que não percebi bem. Claro que em vez de solidão, haver antes solidariedade é sempre uma boa ideia. Mas fiquei a pensar que me estava a escapar qualquer coisa. Quando soube da notícia, percebi.

Obrigada, JV. Gostei que ali tenha deixado esta referência. Ainda por cima, toda a gente que o conheceu refere a sua generosidade, a sua solidariedade.

Abraço, JV.

Um Jeito Manso disse...

Olá Paulo,

Gostei muito de ler o seu comentário. Tem razão. No outro dia, estive a falar com uma jovem muito 'bem sucedida'. Tem progredido profissionalmente, ganha bem, tem o reconhecimento das pessoas que conhecem o seu trabalho. Não tenho grande intimidade com ela. Aliás, nenhuma. E, no entanto, sem que eu me tivesse apercebido bem do que estava a acontecer, começou a contar-me como controla a ansiedade, como tem dias em que precisa de controlar a respiração. E ao falar comigo começou a chorar. Fiquei muito impressionada pois parece uma pessoa muito segura de si, sem hesitações, sem vestígio de insegurança. A vida das pessoas anda uma coisa meio estranha, mesmo. Dá ideia que tudo deveria ser repensado, não é?

Não há sucesso sem afecto, não há felicidade sem um amparo. Acho eu...

Quanto às imagens do que imagina terem sido as minhas sessões dançantes, lamento desiludi-lo mas não eram nada assim. Nem pouco mais ou menos. Talvez tenham sido assim os bailaricos dos meus pais. Os meus eram mais como a Áurea e o Zambujo a dançarem, embora mais agarradinhos do que eles:

https://www.youtube.com/watch?v=06qMRPCAci8

E imagino como teria sido menos emocionante a minha pré-adolescência e adolescência sem aquelas tardes e anoiteceres, à média-luz, agarradinhos ou, a seguir, a soltarmos a energia e as hormonas, dançando loucamente como se não houvesse dia seguinte.

E esse filme de que fala (e, sim, já o tinha referido) deve mesmo ser de antologia. Vou ver se encontro o dvd.

... E as coisas que sabe e de que se lembra, Paulo. Essa do Zink está bem achada. E o livro é engraçado, é? Não tenho nenhum livro dele. Não sei... nunca me convenceu. Será que devo reconsiderar?

Gracias, Paulo!


Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Tem razão. O culto das aparências por vezes está aliado a muitas inseguranças, não é?

Mas sinto-o menos animado. Tudo bem consigo, Francisco?

Seja como for, vai daqui um abraço. E votos de um dia feliz.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Completamente, é estar ao nível da epiderme existencial para sobreviver emocionalmente.

Rica UJM, que querida, mas não se preocupe pois estou é com ocupações acrescidas (e ainda bem), pelo que estou menos cometandeiro.

Um abraço também e um dia feliz também.

Paulo B. disse...

Olá UJM,

Começando pelo fim, eu acho piada ao Rui Zink. À personagem. Ao humor. Literariamente, "na forma" não é dos meus autores favoritos. Mas as suas histórias, de leitura fácil, são interessantes, inteligentes e divertidas. Aquele que mais me marcou foi o destino turístico. Bela crítica a esta coisa da indústria do turismo (e olhe - agora vejo isto em todo o lado - a esta problemática da solidão também!). O A instalação do medo tem uma estrutura literária mais próxima do texto teatral (e, na verdade, já vi duas adaptações teatrais e uma cinematográfica / curta metragem), pelo que tem outro ritmo de leitura. Mas é capaz de ser o melhor livro dele (pelo menos dos que li!). Ainda não li o novo Manual do bom fascista. Ando desleixado na literatura. :(

Pessoalmente achei O baile engraçado mas não sei se o classificaria de antologia. De grande calibre do Etorre Scola é o Feios Porcos e Mais (que não é assim tão longe de uma realidade portuguesa à mesma época).

Grande festeira que a UJM me saiu hein. Eu sempre fui muito envergonhadinho, mas por dentro adorava os bailaricos! Os meus eram (e são, embora cada vez menos) assim https://youtu.be/7N3Tv5E6IZ0
(E digo eram e são porque este filme é mais documentário do que ficção... e digo-o com o conhecimento de causa de quem realmente frequentou essas paragens e outras nas redondezas).

Abraço!