quarta-feira, novembro 20, 2019

José Mário Branco, aquele que veio de longe




Nestas coisas nunca ninguém pode dizer que foi melhor assim. Eu, pelo menos, sinto-me incapaz de avaliar. Sei lá. Uma partida, ainda por cima quando a pessoa gosta de viver e tem muitas ideias na cabeça e força no corpo, é sempre a amputação de um percurso. De qualquer maneira, quando li que foi um AVC, não pude impedir que me ocorresse que ainda bem que não ficou cá para assistir à sua própria decrepitude, ficando dependente, incapaz de ser senhor da sua vontade. Independente como sempre foi, haveria de sofrer tremendamente se ficasse sem andar, se calhar com problemas na fala, se calhar sem mexer um dos braços, sujeito a ter que ser lavado, alimentado, movimentado por outros. Mas, lá está, isto sou eu a falar e, claro, influenciada pela situação do meu pai.
Mas como posso eu ter um pensamento assim a respeito de José Mário Branco se, a propósito do meu pai, mais velho, com uma dependência avaliada em mais de 90%, todos nos assustamos se ele piora e tudo fazemos para que fique bem? Quando estava mais lúcido e conseguia falar, chorava e dizia que queria morrer. E nós interrompíamos esses lamentos, não queríamos que ele dissesse isso, custávamo-nos muito. Mas a natureza é benevolente e vai retirando a consciência à medida que a dependência aumenta e, por isso, agora já nem do próprio estado em que se encontra ele deve ter perfeita consciência. 
Mas, portanto, sabe-se lá o que é melhor. Melhor teria sido se não tivesse tido o AVC. Mas, mesmo isso, é daquelas coisas. Queremos a vida eterna. Custa-nos aceitar a interrupção da vida, em especial quando é uma vida tão pródiga em talento. Mas ninguém cá fica. Por isso, tenho para mim que mais do que chorar a partida de alguém, devemos é festejar que tenha acontecido o milagre de existir e que tenhamos tido o privilégio de termos sido contemporâneos para testemunharmos as maravilhosas manifestações da sua vida.

A minha memória musical não é grande coisa. Depois de ter sabido da triste notícia, durante todo o dia andei com o Eu vim de longe na cabeça. Ouvi falar na Inquietação e recordei-a. Mas foi sempre o Eu vim de longe que se manteve instalado. Mas agora, em casa, ouvi várias cantadas pelo meu marido. Sabe incontáveis canções de fio a pavio, a letra e música inteiras. Cantou umas atrás de outras. Sempre foi admirador de Zé Mário Branco e temos vários discos e CDs. E eu também gosto muito. 

Nestas coisas tendemos a ser injustos, fixamo-nos numa fase ou numa faceta da vida artística destas pessoas que, em dado período, tiveram grande visibilidade. Mas a vida de Zé Mário Branco foi muito mais do que esse período antes e a seguir ao 25 de Abril: tem sido compositor e produtor e grandes trabalhos saíram das suas mãos. Dizem dele que era genial e eu acredito que sim. Mas, por ser fraca conhecedora, não arrisco encómios.
Não gosto de elogios fúnebres, acho sempre que tudo o que se diga é incompleto, omisso, injusto. Por isso, nem pensar em ousar ir por aí. Mas há quem o faça bem: o país encheu-se de saudade, de recordações e de palavras que procuram o consolo para partidas assim, tão inesperadas.
Por ora, fico-me, pois, por aqui.

E José Mário Branco também ficará, só que para sempre. Enquanto tivermos memória, poderemos sempre encontrá-lo nos muitos e belos trabalhos que nos deixou.

Eu vim de longe....José Mário Branco. 

6 comentários:

Anónimo disse...

A primeira que ouvi foi A Queixa das Jovens Almas Censuradas. A força das palavras na voz do Zé Mário Branco tomou-me de assalto. Não conhecia o poema, não conhecia ainda sequer Natália Correia. Foi arrebatador. Dão-nos bilhetes para o céu / Levado à cena num teatro. Voz que parecia chorar de desesperança enraivecida. Onde o animal que espete os cornos no destino? Tocou-me muito, muito. Depois, no auge da crise, volta e meia ouvia o FMI. Esse querer ser feliz agora, porra, que faz querer desnascer, ó Mãe. Um grito de revolta impressionante, ao mesmo tempo força e desespero.
Um abraço,
JV

Anónimo disse...

Gostei de ler esta sua singela homenagem ao Zé Mário Branco. A propósito, ainda hoje (também) sinto a falta do Zeca Afonso. Ontem à noite, na RTP 1, tive ocasião de ver uma reportagem de cerca de 1 hora sobre o José Mário Branco e gostei do que vi. Foi até, digamos, comovente, a forma como a mesma foi feita e transmitida. Vá lá, que ainda vai havendo, na TV, quem faça um trabalho decente e bonito sobre alguém com o José Mário Branco.
Bom resto de semana,
P.

Paulo B. disse...

Muito bom esse trabalho que passou na RTP. E se eu conhecia o trabalho do JMP, a verdade é que pouco conhecia desse lado mais autobiográfico, a sua visão do mundo e da vida (para lá daquilo que é mais conhecido), ficando com uma pena enorme de não o ter ouvido falar de si, do que pensa, mais vezes.

Abraço,

Tiago Gonçalves disse...

Parece que JMB recusou condecorações...
De facto a melhor que se lhe pode fazer é recordar, conhecer e viver o seu contributo para a música nacional. O documentário acima referido é realmente de boa qualidade.
E assim parte mais um dos vultos da geração cultural de Abril...

Anónimo disse...

UJM,
Às vezes, você parece reflectir uma certa insensibilidade, quando, por exemplo, diz “não gosto de elogios fúnebres, etc e tal”. Não se trata de elogios fúnebres, mas de uma homenagem a quem partiu, singela, pequena, ou outra qualquer. Se quem estimou quem partiu, sobretudo, como foi o caso do JMB, assim de repente, mas podia ter sido de outra forma, porque não deixar-lhe umas palavras sentidas, que, sendo sinceras, vêm do coração, ou da amizade, ou admiração, que se tinha por quem partiu?
Não sei se é ausência de sentimentos, se dureza de coração, se simplesmente uma atitude da sua parte, enfim, de como olha a vida e a morte, no que está, naturalmente, no seu pleno direito. Cada um olha para os instantes da vida como bem entende, como sente as coisas, os desfechos desta vida, as circunstâncias da mesma, etc.
Aqui há tempos perdi um grande amigo. Eu e outros amigos. Ele fazia parte de um grupo que se reunia de quando em quando, sem datas marcadas, mas que fazíamos questão - e ainda fazemos hoje – de nos encontrarmos, num almoço, algures num restaurante em Lisboa, e ali estarmos em plena cavaqueira a dissertar sobre mil e uma coisas.
Quando “partiu”, ainda cedo, digamos, um dos filhos (a filha) fez questão de ler um texto que ela tinha escrito sobre o pai amado, em representação dos filhos (ele era divorciado). Uma pequena breve história do que foi a vida daquele pai (e nosso grande amigo). Foi bonito de ver e ouvi-la.
2. Quando meu pai faleceu, já lá vão quase 2 anos, meus irmãos pediram-me que lhe deixasse umas palavras sobre ele e a sua vida, que foi aliás bastante aventurosa (como tem sido, curiosamente, tradição na nossa família, a começar pelos nossos avós, etc, histórias até bem divertidas). E assim acabei por fazer, no final da “conversa” do padre (nossa mãe, embora não seja muito Católica – postura que faz parte da família, perante a Igreja – por qualquer razão que ainda hoje nos escapa, entendeu que, após a cremação se deveria mandar rezar-lhe uma missa) na capela. E devo dizer que aquilo que escrevi e ali disse saiu-me do coração, de mim e meus irmãos (e nossa mãe, naturalmente). Lá está, foi um elogio fúnebre. Sentido, onde ficava patente a saudade que, naquele momento, sentíamos todos os mais próximos.
Do mesmo modo, compreendo, perfeitamente, que se digam e deixem palavras de particular carinho, respeito, admiração, recordação, o que seja, sobre alguém que, embora não sendo da família, ou amigo, nem por isso deixamos de sentir a sua falta, ou querer homenagear.
A mim, por exemplo, custou-me a morte do Zeca Afonso. Se, nessa altura tivesse um Blogue, seguramente que lhe teria deixado umas palavras sentidas.
Daí que, me custa ler essa sua postura perante a ausência de quem parte. Não me refiro, naturalmente, ao Zé Mário Branco, evidentemente, mas ao que diz, tão só.
Mas, cada um, ou uma, reage perante as coisas da vida conforme bem entende e o coração exprime.
E depois, o Passado também faz parte da vida. Aliás, mais do que o presente. É o nosso ADN. Mas, para a UJM, se bem me recordo do que em tempso escreveu, quase que só o futuro (ou, vá lá, opresente) conta. Eu nutro uma imensa saudade de certos passados da minha vida. Sobretudo da minha juventude e adolecência. E faço questão de não esquecer esse passado, que aliás transmito a meus filhos. Embora olhe para o presente e o futuro. Um elogio fúnebro é de algum modo uma homenagem ao passado de alguém, que merece ser recordado. Com dignidade, se assim se comportou perante a vida.
Bom resto de semana!
P.Rufino

Anónimo disse...

Olhe, eu nisto sou como a UJM, P.Rufino. Se bem a entendo, e acho sim, embora os haja belos e sentidos, tocando a nós o registo de elogio fúnebre, fica-nos aquela sensação de que dissemos pouco, de que o homenageado merecia mais, muito mais do alcance das nossas palavras. E que por isso - eis a questão fundamental - o pouco que fazemos é quase uma afronta, quase um insulto, a alguém que gostaríamos tanto de poder dar mais. O que me coíbe a mim de falar nestas circunstâncias é, pois, o respeito. Outras formas haverá de sentir e demonstrar esse respeito: com ou sem palavras. Mas é assim comigo: sinto-me como quem não se atreve a tocar numa peça preciosa com medo de estragar.
Também não gosto, por outro lado, de falsos elogios fúnebres. Ditos por gente que nem gostava nem admirava a pessoa ida. Mas isso é já outra conversa, claro.

Um abraço para si, P.
JV