segunda-feira, agosto 20, 2018

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.



Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face.





Uma mulher desliza entre o verde que a rodeia. Respira com vagar, aspira os odores, sente os cheiros que a terra exala. Queria ser bicho e esconder-se ali, entre a folhagem, sob a caruma, entre os troncos das árvores. Está calor e sente saudade da frescura e do sereno afago da sombra. Desloca-se sob as árvores, procura abrigos onde o silêncio e o sossego sejam uma boa companhia.


Mesmo que não caminhe, os seus pensamentos vagueiam. Percorre memórias, relembra palavras lidas, imagina rostos, inventa biografias, constrói histórias. Por vezes abre os olhos mas não os foca na proximidade. Procura a lonjura onde se escondem aqueles em quem pensa.

As cigarras subiram para a copa das árvores e não dão tréguas. Inflamadas, agitadas, electrificam o ar quando a mulher o quereria pacificado. Queria o elegante esvoaçar das rolas, o canto alegre dos pássaros. Mas refugiaram-se do calor, procuraram outras paragens. Ou, então, estão apenas indolentes, silenciosos.

Depois volta a fechar os olhos. Os seus pensamentos continuam envoltos em verde, entrelaçados nos arabescos que os jogos de luz desenham. Solitariamente continua a entretecer lembranças, fiapos de conversas, poemas soltos, ecos de acordes longínquos.


Nos muros há poemas. Foi a mulher que os escolheu e ali os quis ter. E há pinturas. E há árvores e flores. E caruma. E a pesada ausência do canto dos pássaros. A mulher caminha e diz, num murmúrio só seu, os poemas que vai lendo.

Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher. 
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.


Não quer muita coisa da vida, esta mulher. Quer apenas a inteireza das frontes inocentes e corajosas, a doçura espontânea dos corações amáveis, o abraço tão longamente esperado, adivinhado, tão desejado. Quer também a verdade das palavras. A verdade sem espelhos enganadores, sem perigosos labirintos. Só a verdade limpa e boa. Não é muito. Mas, se calhar, é.

A mulher caminha. Caminha com os seus passos solitários e silenciosos e com os seus pensamentos secretos. Vai nua, descalça. Assim gosta de andar, o sol e o calor na pele, a transpiração na nuca, no ventre.

- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei. 

E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.

Depois ouve uma agitação entre as folhas, o som vivo de um outro ser. Detem-se. Espera. Espera que o silêncio pouse, de novo, sobre os seus passos.

E olha.


O outro ser está também em suspenso, em silêncio. Aguarda. Olha. Uma mulher que quer ser um bicho respira devagar, toda ela imóvel. E junto a si, igualmente imóvel, o outro ser, entre o verde e as folhas enrubescidas, aguarda. Tudo se conjuga nesse instante: a tranquilidade, a perfeição dos momentos únicos e inesperados, a vontade de que nada perturbe o sonho feliz, o silêncio e a paz das nossas existências.

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.

Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.


.................................................................

Excerto de O amor em visita de Herberto Helder
Embers de Max Richter
Fotografias feitas este domingo in heaven

....................................................................

2 comentários:

Unknown disse...

Belo! Mesmo para além de Herberto Helder.
(Esse poema não é um poema, é uma avalancha de sentimentos e emoções)

LS

Um Jeito Manso disse...

Olá LS,

Muito obrigada. E é mesmo, uma torrente em estado vivo, sangue, carne, respiração, transpiração, bafo, amor, sonho, corridas na noite. Uma torrente visceral.