É que é muita coisa. Por me saberem fora por uns dias, toda a gente se precipitou a despachar para cima de mim tudo o que costuma ser aspergido gradualmente. Nestes dias não, foi de mangueirada. O mail não parava, os pedidos disto, daquilo e do outro ainda menos. Queria suspender a actividade durante uns segundos a ver se ficava tudo em ordem e nem conseguia tempo para pensar. Uma impotência para gerir o meu tempo, tanto usam e abusam dele.
Há muito tempo que não tenho umas vacances grandes e descansadas. E a verdade é que até parece que já me desabituei de ir descansada para férias. Há dois anos foi o que foi. O ano passado foi o bom e o bonito. Estou a escrever e a bater na madeira para afugentar os maus ventos. Quero e preciso de paz de espírito. Só eu sei o quanto o preciso. Só eu sei o que têm sido os últimos tempos. Sem tréguas. Um carrocel. (E, não, Chevy, não tem sido ao som do Quim Barreiros, tem sido bem pior).
Mas fui intervalando e, nos intervalos, como sempre, não sobrevive uma única preocupação. A minha cabeça felizmente tem um sistema de tipo carro-vassoura que varre tudo o que de mau apanha à frente.
Mas fui intervalando e, nos intervalos, como sempre, não sobrevive uma única preocupação. A minha cabeça felizmente tem um sistema de tipo carro-vassoura que varre tudo o que de mau apanha à frente.
Ontem à noite juntámo-nos todos numa festa de anos. Uma leoa que insiste em ser leoa mas que, cá para mim, está mais para virgem do que para leoa -- mas não faz mal, cada um é o que quiser ser, quer ser leoa, pois que seja leoa. Quando a ideia era fazer os festejos num restaurante, protestei. E o meu marido protestou comigo, ou seja, não ao meu lado mas contra mim. Queixa-se que estou sempre a chegar-me à frente sem medir bem o trabalho que as coisas dão. Mas embirro com almoços ou jantares de família no restaurante, sejam de aniversário ou não. Para começar, os miúdos chegam a um ponto em que já não atinam sentados. Acresce que o bebé, que é fino, saíu o mais irrequieto e folião de todos. Mantê-lo sossegado na cadeirinha é uma miragem. Portanto, estarmos num lugar público -- um grupo grande e ruidoso, com crianças brincalhonas e irrequietas -- e querer manter a compostura é missão impossível, é uma dor de cabeça. É que convém não maçar os demais convivas, certo? Portanto, sugeri: e porque não cá em casa? O meu marido logo contrariado: depois de um dia de trabalho, como vais conseguir dar conta do recado? E a louça? E a desarrumação? E, não te esqueças, no dia seguinte trabalhamos.
Mas ela que não, que não, que preferia num restaurante. Mas, depois de várias iterações, acabou mesmo por ser cá em casa e ao meu marido desapareceram logo os protestos mal a neta foi ter com ele para lhe pedir um abracinho e mal beija e pede um give me five aos outros, ou seja, mal se vê rodeado daquela criançada linda e bem disposta. Portanto, casa cheia. E depois da janta e dos parabéns a você e de se apagarem as velas, o queridíssimo penúltimo foi buscar a guitarra e tocou e cantou, o bebé tocou e dançou, e todos fizeram um jogo e o bebé tentou desmanchar-lhes o jogo e todos se enfureceram com ele e pegaram-ne ao colo de qualquer maneira para o tirarem dali e ele, ar de quem não quer a coisa, sorrateiro, voltou uma e outra e outra vez... E, para mim, vê-los e fotografá-los é uma alegria do tamanho do mundo. Claro que fico um bocado cansada mas passa logo e não há nada melhor do que ter toda a descendência, descontraída e feliz da vida, em nossa volta.
E eu vinha aqui para dizer outra coisa e, sem me dar conta, desatei outra vez a descrever as minhas minudências.
Queria dizer que, como se não tivesse aqui mais do que muitos livros por ler, fui abastecer-me como gosto de fazer quando vou estar uns dias longe das livrarias. Ia para As almas mortas mas não me apeteceu. Gosto de me desenfiar, não sou de seguir conselhos à risca. Optei antes pelos Contos de Petersburgo. E, como fiquei apaixonada pelo Carlos Fuentes, trouxe também o Aquiles ou o Guerrilheiro e o Assassino. No outro dia já tinha trazido outros como, por exemplo, aquele do Manguel, o Embalando a minha biblioteca que, só de vê-lo, fez tocar em mim todas as campainhas.
Tem graça isto. Há uma fauna que vagueia por entre as estantes. Eu faço parte. As estantes já me devem reconhecer. Só não sou do género de pegar num livro e de me pôr por lá sentada a ler. Para isso ainda não me deu. Gosto de ler com privacidade. E gosto de ler reclinada. E ali, não sei porquê, parece que não me dá jeito deitar. Só se encontrasse algum senhor com ar simpático e lhe perguntasse se não se importava que me deitasse com a cabeça sobre as suas pernas. Assim, talvez já pudesse ser. Agora pôr-me ali sentada, a seco, no meio dos outros, não.
Quando a gente vai várias vezes à mesma livraria acaba por já conhecer alguns rostos e por ver outros que nunca viu. Ou, então, acaba por ver alguns que já não via desde há meses, ficando-se, então, na dúvida se são eles mesmos. Se um estava de casacão no inverno e agora a gente o vê de calções e manga curta, fica a dúvida: é o mesmo? E depois, se já o viu noutro sítio, noutra livraria, fica na dúvida se é o mesmo ou se será simplesmente alguém parecido com aquele actor conhecido de uma série americana. E depois a gente pensa: na volta este é aquele que ninguém sabe quem é. Mas depois a gente pensa que, de tanto andar entre personagens literárias, já começa a ficcionar a propósito de cada pessoa com que se cruza. E fica a pensar: que livro seria aquele que ele levava na mão? Um livro com tanta página. Seria qual? Porque mais importante que a identidade de uma pessoa é o livro que a pessoa leva na mão. Ou não. Eu, por exemplo, se for vista com um livro do Banana na mão passarei por ser aquilo que posso parecer mas não sou, porque, para ser isso, teria que ter na outra mão o último do Paulo Coelho -- e, caraças, isso é que não.
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Queria dizer que, como se não tivesse aqui mais do que muitos livros por ler, fui abastecer-me como gosto de fazer quando vou estar uns dias longe das livrarias. Ia para As almas mortas mas não me apeteceu. Gosto de me desenfiar, não sou de seguir conselhos à risca. Optei antes pelos Contos de Petersburgo. E, como fiquei apaixonada pelo Carlos Fuentes, trouxe também o Aquiles ou o Guerrilheiro e o Assassino. No outro dia já tinha trazido outros como, por exemplo, aquele do Manguel, o Embalando a minha biblioteca que, só de vê-lo, fez tocar em mim todas as campainhas.
Tem graça isto. Há uma fauna que vagueia por entre as estantes. Eu faço parte. As estantes já me devem reconhecer. Só não sou do género de pegar num livro e de me pôr por lá sentada a ler. Para isso ainda não me deu. Gosto de ler com privacidade. E gosto de ler reclinada. E ali, não sei porquê, parece que não me dá jeito deitar. Só se encontrasse algum senhor com ar simpático e lhe perguntasse se não se importava que me deitasse com a cabeça sobre as suas pernas. Assim, talvez já pudesse ser. Agora pôr-me ali sentada, a seco, no meio dos outros, não.
Quando a gente vai várias vezes à mesma livraria acaba por já conhecer alguns rostos e por ver outros que nunca viu. Ou, então, acaba por ver alguns que já não via desde há meses, ficando-se, então, na dúvida se são eles mesmos. Se um estava de casacão no inverno e agora a gente o vê de calções e manga curta, fica a dúvida: é o mesmo? E depois, se já o viu noutro sítio, noutra livraria, fica na dúvida se é o mesmo ou se será simplesmente alguém parecido com aquele actor conhecido de uma série americana. E depois a gente pensa: na volta este é aquele que ninguém sabe quem é. Mas depois a gente pensa que, de tanto andar entre personagens literárias, já começa a ficcionar a propósito de cada pessoa com que se cruza. E fica a pensar: que livro seria aquele que ele levava na mão? Um livro com tanta página. Seria qual? Porque mais importante que a identidade de uma pessoa é o livro que a pessoa leva na mão. Ou não. Eu, por exemplo, se for vista com um livro do Banana na mão passarei por ser aquilo que posso parecer mas não sou, porque, para ser isso, teria que ter na outra mão o último do Paulo Coelho -- e, caraças, isso é que não.
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E, de momento, é isto. Agora vou ler uma contestação porque vou ter que enviar o meu parecer e aquela gaita tem umas cinquenta páginas ou mais, na volta tem é umas cem, um pincel intragável, e não me apetece estar em férias e andar com porcarias complicadas às costas.
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Mas antes, minha gente, pensando numas coisas cá minhas, vou mas é dar uma dançadinha a preceito.
Juntem-se ao bailarico, se faz favor.
You don't own me
- Grace interpreta e Kate Moss dança
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