quarta-feira, agosto 22, 2018

Almoçar no céu, a 5.584 km de distância e com um intervalo de 86 anos



Já contei que padeço de vertigens? E alguém aí desse lado sabe o que isso é? Se não sabem, não consigo explicar.

Mas posso tentar: é a gente, só de pensar nisso, ficar logo com uma estranha moleza nos pés, um formigueiro que não se sente mas que está lá, uma aflição instantânea, a sensação que se vai cair sem ter onde agarrar.

Quando era pequena, os meus pais gostavam de ir para praias sem ninguém, praias abrigadas entre rochas. Lembro-me de uma para a qual se descia por uma escada de cimento, construída junto a um rochedo. De um lado tinha a pedra, do outro não tinha nada. Aquilo para mim era uma tortura. Os meus pais não ligavam nenhuma ao meu terror e, de resto, acho que disfarçava para não passar por caguinchas. Adorava aquela pequeníssima praia, as pocinhas, andar aos mexilhões, tudo -- excepto entrar e sair dela.

Também já contei que, adolescente, chegavam uns amigos de barco, uma turma de malta destemida, e trepavam às rochas mais altas e atiraravam-se de lá, em mergulho, com acrobacias pelos ares. Um deles era o meu apaixonado. Eu ficava fascinada com tamanha valentia. Mas todos o faziam, rapazes e raparigas. Todos menos eu. Odiava ser a maricas do grupo. Toda a gente subia, na maior risota. E eu, feita corajosa, punha-me a trepar. Mas, chegada a meio, trespassada pelas vertigens, ficava imobilizada. Os outros todos, rapazes e raparigas, na maior descontração e eu ali, feita totó, agarradinha às pedras, com medo de me despenhar. E vir para baixo...? Pá, que horror. Só de pensar nisso já estou cheia delas. Não querendo dar parte de fraca, parte a andar de gatas, parte a vir sentada, o que me salvava do ridículo é que os outros, no despique em que andavam, transbordantes de energia, nem davam por mim. Ou, então, faziam a caridade de fingir que não se apercebiam daquele meu papelinho.

E quando ia ao circo e vinha o número dos trapezistas...? O que eu penava. À medida que eles atingiam as alturas, o meu sofrimento ia crescendo. Tinha a sensação que se iam atirar, sem rede, sem nada que os salvasse, atraídos pelo irrecusável abismo.

Não há muito tempo fomos a um castelo. Sabia que a vista de lá devia ser estonteante. O meu marido foi e disse para eu ir, que era mesmo muito bonito, que a escada era larga, que não havia problema. Enchi-me de coragem. O meu marido disse: 'Olha para cima, não olhes para baixo'. Caramba, já tenho idade para saber controlar as fobias. Respirei fundo, enchi-me de coragem. Lá fui. Quando estava quase a atingir o passadiço lá em cima e com as pernas já tolhidas e os pés ainda mais, toda eu a sentir as maganas das vertigens a picarem-me a sola dos pés e a amarinharem por mim acima, olhei para baixo. Ai... só de pensar... Deu-me um medo... Já não consegui acabar de subir mas o pior é que estava paralisada, com medo de descer. Teve o meu marido que se vir pôr ao pé de mim, já não me lembro se atrás, se à frente, e eu ali fui, devagarinho, cheinha de miaufa, toda eu entrevadinha, acagaçadinha.

Portanto, imaginem como me sinto eu ver a fotografia lá em cima, Lunch Atop a Skyscaper, supostamente da autoria de Charles C. Ebbets, feita há 86 anos, onde se vêem os operarários que trabalharam na construção do Rockefeller Plaza, um arranha-céus de 70 andares, a almoçar, sem qualquer protecção, a mais de 250 metros do chão, à altura do 69º andar. Um pesadelo. Esvai-se-me a sensibilidade dos pés só de olhar para ela.

A fotografia abaixo, da autoria de Jonathan Brady, foi tirada agora em Londres, num arranha-céus, a 140 metros. A ideia foi da Deliveroo, um entregador de comidas, concorrente da Uber Eats, que, durante uns dias, convidou os londrinos para uma refeição que simula a outra. Mas, do que percebi, trata-se de uma estrutura segura que tem logo o telhado ali por baixo. Presumo que ainda iremos ter um anúncio com isto pelo que vou esperar pelo making of para perceber se as vertigens que sinto ao olhar são legítimas ou estúpidas.

Já agora, tem-se especulado se o almoço na viga de ferro do edifício em construção em 1932 estava mesmo suspensa sobre o nada ou se haveria uma plataforma um pouco abaixo. Seja como for, com ou sem protecção, é preciso tê-los no sítio para andar empoleirado com os pés tão longe do chão e sem cinto, suspensórios, fraldas, rede por baixo, pára-quedas nas costas e um anjinho da guarda a voar em volta.


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