quarta-feira, agosto 22, 2018

Selecção e sedução.
Love me Tinder




Imaginemos.

Uma situação muito simples. A cada uma das pessoas que já se me dirigiu por mail, e já foram muitas, eu convidava para se encontrar comigo. Ficariam todas muito admiradas: sou esquiva, bicho do mato. Várias já me convidaram -- para um lançamento de livro, para uma sessão disto e daquilo, para um café, para um jantar, para me oferecer um presente. Tenho um pretexto que é bem real e que me ajuda a não ter que mentir: tenho a vida de tal forma preenchida que não consigo acomodar novas andanças. Mas, mesmo que tivesse o tempo todo por minha conta, haveria de me furtar. Prefiro-me transparente, invisível, intangível. Por isso, cada um dos meus Leitores, recebendo um afável e inesperado convite, estranharia; mas, por simpatia e, presumo, alguma curiosidade, compareceria.

Ou outra possibilidade.

Inscrevia-me no Tinder (e quem vos garante que já por lá não ando a cirandar?) e, toda faceira e galante, desenvolvia um saboroso jogo de sedução online. E, ao longo de uns tempos, ia marcando um encontro com cada um dos meus interlocutores. Poderia ser numa clareira de um parque ou num jardim. Imaginemos, talvez, o coreto de um Jardim. 

Em qualquer dos casos marcaria, com cada um, o mesmo dia, a mesma hora, o mesmo local. Cada um pensaria que o encontro seria apenas entre nós dois (ou duas) mas, uma vez lá chegados, constatariam que, à volta do coreto, se reunia um grande grupo de pessoas. Mas os jardins são públicos. Não desconfiariam que todos ali estavam ao mesmo.

Então, uma mulher subiria ao coreto. Como ninguém me conhece, ficariam admirados. Será? Não será?

Seria. Seria eu, sim.
Não exactamente igual à mulher que escolhi para ilustrar o post mas eu. Eu tal como sou.
Sorridente, cumprimentaria o belo grupo que rodearia o coreto. Diria nomes, todos os nomes de Leitores de que me lembrasse. Veria os sorrisos. Agradeceria a presença e, gaiatamente, desculpar-me-ia pela maldade de os não ter avisado do que se iria passar.

E diria: Sim, vamos ter um encontro a dois. Mas primeiro tenho que escolher com quem vai ser. Ganha o que merecer. 

Olhariam uns para os outros, uns desanimados, outros intrigados, quase todos sorrindo. 

E, então, provocadoramente, eu perguntaria: Há aqui alguém que tenha apoiado o Passos Coelho?

Silêncio. Numa altura destas quem é que confessa tal simpatia em público? Agora, parece que nunca ninguém apoiou tal alimária. Teria que insistir: Se há alguém, agradeço que ponha a mão no ar.

A medo, uns quantos, poucos, levantariam o braço. E, aí, eu diria: Muito bem. É de louvar a sinceridade. Mas façam o favor de se retirarem. O láparo e eu somos imiscíveis. E, com ar falsamente zangado, ordenaria: Andor.

Os outros desatariam a gritar em uníssono: 'Andor! Andor!' e os laranjas enrustidos não teriam como lá ficar. Rabo entre as pernas, entre apupos de rejeição, era vê-los a zarpar de fininho.

A seguir perguntaria: Há aqui alguém que tenha tido um desgosto de amor por ter sido abandonado? Silêncio. Gente a olhar em volta. Eu insistiria: Quem já foi abandonado faça o favor de levantar o braço.

E, então, hesitantemente, alguns levantavam a mão. Podem também sair, diria eu, Confio na opinião de quem vos abandonou. E esses, uns homens, outros mulheres, abandonariam o local, acabrunhados, duas vezes rejeitados.

Muito bem, estamos no bom caminho. Nada como uma boa depuração. Continuemos: há aqui alguém que durma de pijama?, seria a minha pergunta seguinte e, uma vez mais, temendo o veredicto, ninguém se acusaria. Eu insistiria: Já o disse e, do que me conhecem, sabem-no bem: sinceridade e coragem são fundamentais. Quem dorme de pijama que dê um passo em frente porque, obviamente, não tem aqui cabimento.

Com alguma timidez, alguns homens e algumas mulheres, dá-lo-iam e, claro, imediatamente foram instados a abandonar o espaço.

A seguir: Se há aqui algum Nandinho, alguma Mariazinha ou alguma Lenita agradeço que perceba que deve desistir. E, com ar injustiçado, três pessoas afastar-se-iam, abanando a cabeça. Toda a gente começaria a pensar que o que estava ali a passar-se era inadmissível. Mas nenhum dos que ainda não tinha sido escorraçado tomaria a iniciativa de se ir embora.

E continuaria: Fumadores. Não gosto do hálito do tabaco. Incomoda-me. Lamento. Pode ser boa gente mas sou sensível a cheiros; e cheiro a boca velha e requentada não dá. Podem ir. E uns quantos catarrentos tiraram o maço de tabaco do bolso e afastar-se-iam-se a fumar e a praguejar.

Diria, então: Homens lourinhos e ladies com nails artísticas também não aprecio... Fazer o quê? Gostos... Alguém protestaria: 'Não tem sentido. Tudo isto é arbitrário'. Mas eu concederia: É verdade. Gostar ou não gostar não é coisa muito racional. Mas saiam, por favor, os que forem como eu disse. E lá se afastariam mais uns quantos.

Está quase. Está quase a encontrar-se a pessoa que vai sair comigo, um encontro memorável, juro. Mas agora afastem-se todos os que tenham mais do que uma tatuagem ou em que a tatuagem seja indiscreta ou de mau gosto.

Lá de baixo, ouvir-se-ia um desafio: 'Ai é? E quem é que vai avaliar?'

E eu esclareceria: Nos casos em que não há capacidade de auto-avaliação, eu. Quem tiver dúvidas, mostre-as. Se necessário, dispa-se. E, após uns instantes, conformados, saíriam mais uns quantos.

Passemos a coisas sérias: quem estiver aqui para um simples engate, para tirar umas casquinha ou para se armar em esperto, fora daqui. Só me interessa gente séria e bem intencionada. Mas quem estiver para um noivado a sério, também fora daqui. Só de pensar que há quem diga noivo ou noiva ou esposo ou esposa fico incomodada. E mais uns quantos, quase os últimos, afastar-se-iam, sorrindo como se tivessem ganho alguma medalha que só eles viam mas, no fundo, intrigados com a verdadeira razão pela qual estavam a ser afastados.

Sobram três pessoas: uma mulher e dois homens. Está difícil. Vou ter que usar critérios um pouco exigentes, quiçá, até, injustos. Mas é a vida. Um dia bem passado comigo requer que me digam poesia. Se algum dos três não souber um poema de cor, terá que perceber que deve afastar-se. A mulher afastar-se-ia, piscando-me o olho. Percebê-la-ia e retribuíria.

Ficariam dois homens. Idades aproximadas, fisicamente não muito díspares, rostos agradáveis. Então eu diria: Podia ficar com os dois. Não seria mal visto. Mas, para já, como não vos conheço bem, prefiro não arriscar. Mostrem-me as vossas mãos. Umas seriam mais a meu gosto. Desceria e dirigir-me-ia a esse. Olhá-lo-ia nos olhos. Diria o seu nome. Ele confirmaria e diria: 'Reconheceu-me'. Eu abraçá-lo-ia. Depois dar-lhe-ia a mão e afastar-nos-íamos os dois. 

As câmaras tudo teriam filmado.

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E isto foi, mais coisa, menos coisa, o que fez Natasha Aponte no outro dia, em Nova Iorque. Marcou encontros com 'amigos' do Tinder e pregou-lhes uma partida deste género. Ainda não são claras as motivações: a realização de um vídeo, uma campanha, publicidade.

Seja para o que for, acho delicioso e mal posso esperar por aprontar uma destas. Vale? Alinham?

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Uma coisa posso eu, desde já, prometer: o programa não incluiria um almoço perto do céu como estes que abaixo partilho convosco.

3 comentários:

bea disse...

:). Julgo que, dadas as características da proponente, faltaria ao encontro. Mas, caso me desse a doideira, abandonava o recinto à sua primeira fala.

Isabel Pires disse...

Estar no sítio errado à hora errada, tanto na primeira abordagem via Tinder como ao vivo. Refiro-me à marcação do encontro e à forma como é concretizado. É perverso agir de forma a levar os outros ao engano, qualquer que seja a situação. E 'toda a gente' sabe qual é a finalidade do Tinder.
Aliás, esse tipo de encenação não bate bem com nada. Não é por ser o Tinder que o digo.

Se fosse comigo, voltaria costas logo que visse chegar mais gente, nem era preciso ouvir qualquer palavra.

Um Jeito Manso disse...

O objectivo da iniciativa da Natasha Aponte -- e que transpus, mais coisa menos coisa para a realidade portuguesa (por exemplo, onde eu escrevi Passos Coelho, ela disse Donald Trump) -- ainda não percebi bem qual foi. Pelo que li, a empresa que filmou (e, com certeza, que promoveu a iniciativa) parece ter sido a mesma que há tempos colocou uma jovem a circular ao longo do dia pela cidade, registando os piropos que ia ouvindo, vídeo esse que rapidamente se tornou notícia.

Seja como for, nestes tempos meios doidos em que a sociedade vive corroída pelas redes sociais de toda a espécie e feitio, uma coisa destas ainda revela algum sentido de humor. E pode ser chata para os totós que caíram na esparrela mas, enfim, grave, grave não é.