Faz dois anos escrevi aqui sobre os escritos de Fernanda Câncio sobre Sócrates. Dizia, então, que sentia alguma (genuína) pena dela e aconselhava-a a seguir em frente, não ficando enredada nas memórias e nas justificações face ao que sabia ou deixava de saber sobre o ex-namorado.
É certo que Sócrates congrega ódios e paixões pelo que não me custa a imaginar que uma mulher como Fernanda Câncio, toda ela igualmente temperamental, depois da rotura amorosa, possa ter passado da paixão ao ódio. Mas, lembrava-a eu, nessa altura, há sempre mais vida para além da morte de um relacionamento e que o melhor é seguir com a bola para a frente. Ressentimentos e desejos de vingança nunca foram bons conselheiros.
Ainda há dias voltei a ouvir a divulgação pública de telefonemas seus para Sócrates e imagino como se sente ridícula e arrependida daquelas conversas. Todas as brincadeiras, meiguices ou malandrices são permitidas na intimidade de uma conversa a dois mas, quando expostas fora de contexto, facilmente podem ser apenas patéticas. Eu sentir-me-ia humilhada se fossem minhas aquelas palavras.
Mais: tendo namorado com aquele homem poderoso, carismático e de raciocínio ágil, imagino como se sentiu ela ao descobrir que, afinal, pouco sabia daquele homem. Mais ainda: como mulher, imagine-se a perplexidade ao saber como Sócrates não apenas já estava de namorada nova como também ajudava financeiramente outras mulheres. Facilmente uma mulher que se sente enganada se sente furiosa e com vontade de se vingar. Imagine-se, então, uma mulher como Fernanda -- do que lhe tenho visto, facilmente se transformará numa irascível gata em telhado de zinco quente pelo que dela tudo se poderá esperar.
Imagino-me, eu, no seu lugar. Imagine-se se, ao ligar a televisão, ouvia a minha voz dengosa falando com ele, querendo convencê-lo a comprar uma casa caríssima, ou ouvia alguém a relembrar as minhas férias com ele, referindo que frequentávamos belíssimos restaurantes, e eu, tonta ingénua, na altura, convencida de que ele nadava em dinheiro. Imagino quão ridícula e parva me sentiria agora, ouvindo isso. Eu a querer uma casa cara e ele a chamar-me à razão, eu, ivozinha infantilóide, a dizer 'buraco és tu...'. Ah, quanta raiva. Como teria podido ser tão burra, tão inconsciente a ponto de não ter percebido nada....? Como? E a ouvir a cumplicidade dele para com a mãe dos filhos.... Ah, quantos ciúmes.
Imagino a mágoa, a incredulidade, a vontade de lhe atirar à cara mil impropérios.
Então, afinal, não eras rico? Então vivias às custas de um amigo...? Mas onde, à superfície da terra, alguém nos dias de hoje vive às costas de alguém...? Filho da mãe que não confiaste em mim, que não me contaste nada! Um pelintra sem ter onde cair morto e, veja-se bem, armado em bom, a dispensar pagamentos, como se tudo aquilo fosse dinheiro da mãe ou de empréstimos. Falso, falso! E, se foste falso a esse ponto, quem garante que não foste corrupto e que tudo em ti não é um logro? Alguma vez me amaste? Alguma vez me falaste verdade? Como foste capaz? Como deixaste que eu me expusesse, defendendo-te, quando não passas de um vulgar mentiroso? Odeio-te, odeio-te, odeio-te agora e na hora da tua morte. Safado, sacana, filho da mãe! E eu que gostei tanto de ti... Como pudeste fazer-me isto, Zé...?
E Fernanda, sentindo pena de si própria, as lágrimas escorrendo-lhe no rosto, sentindo a raiva a crescer-lhe dos dentes, varada de ódio e ciúme, não podendo deitar as unhas de fora e arranhá-lo de alto a baixo, atira-se ao computador e, com a força das suas palavras, mentalmente chamando-lhe bandido, aldrabão, sacana da pior espécie, e jurando a pés juntos que nunca mais na vida lhe dirige a palavra e que, se se cruzar com ele, virará a cara e fingirá que não o conhece, vai escrevendo:
(...) Urdiu uma teia de enganos. Mentiu, mentiu e tornou a mentir.
Mentiu ao país, ao seu partido, aos correligionários, aos camaradas, aos amigos. E mentiu tanto e tão bem que conseguiu que muita gente séria não só acreditasse nele como o defendesse, em privado e em público, como alguém que consideravam perseguido e alvo de campanhas de notícias falsas, boatos e assassinato de caráter (que, de resto, para ajudar a mentira a ser segura e atingir profundidade, existiram mesmo). (...)
Chocante, porém não surpreendente. De alguém com uma tal ausência de noção do bem e do mal, que instrumentalizou os melhores sentimentos dos seus próximos e dos seus camaradas e fez da mentira forma de vida não se pode esperar vergonha. Novidade e surpresa seria pedir desculpa; reconhecer o mal que fez. Mas a tragédia dele, que fez nossa, é que é de todo incapaz de se ver.
Fernanda é, ao escrever estas palavras, não uma isenta jornalista, mas uma mulher ferida. Uma mulher que usa o púlpito do Diário de Notícias para ferir José Sócrates tanto quanto ele a feriu a ela.
E eu, no fundo, tenho pena dela e dele. Estão unidos pela mesma tragédia.
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Cecilia Bartoli interpreta "Sposa son disprezzata" de Vivaldi
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