terça-feira, julho 11, 2017

Todas as memórias são memórias de outros





Neste domingo estive a ler os ensaios e crónicas de Marcello Duarte Mathias. Diz ele, citando outrem, que todas as memórias são memórias de outros. Concordo. Diria eu: que envolvem outros. 

Penso que é bem verdade, isso: se tentar lembrar-me de momentos meus do passado, eles chegam-me sempre com outras pessoas lá dentro. Não tenho grande ideia de mim sozinha. Sempre fui muito gregária. Se estava sozinha, estava a ler e isso não é estar sozinha. Ou estava a escrever cartas e isso muito menos. De resto, em miúda, estava com uma das minhas primas, a que vivia perto de mim, ou com as meninas da rua. Meninas e meninos. Um dos meninos, ilustre deputado e várias vezes ministro e detentor de outros cargos públicos, era um deles. Sempre muito apertadinho. Gostava dele mas não era o meu preferido. Geralmente era ele que ficava a tomar conta a ver se não aparecia ninguém enquanto andávamos por onde não devíamos.

Depois, mal adolescia, já namorava. E mantinha uma rede de amigos e amigas e organizávamos bailes, convívios, festas de anos, idas ao cinema, passeios à beira-mar ou à praia. 

A minha mãe passava-se e tentava que parte disso fosse desconhecido pelo meu pai. Se eu não conseguia parar em casa, exigia que eu, ao menos, estivesse em casa quando eles, à tarde, chegassem a casa. Claro que aí obedecia. 

Mas lembro-me de episódios isolados, irrelevantes, de forma muito vívida. Por exemplo, quando andava no último do secundário, os meus pais inquietavam-se com a minha vida atribulada, em processo de rompimento com um namorado que amava de paixão, a namorar um outro que me amava de paixão, sempre em actividades sociais de toda a espécie e feitio, a participar num concurso na televisão, a escolher e provar o vestido comprido e a ensaiar a entrada e a valsa para o baile de finalistas, a corresponder-me com uns quantos admiradores de outros liceus que tinha conhecido nesse concurso... e eles não me viam a estudar e temiam que algo corresse mal e que eu não entrasse para a faculdade. Depois, todos os meus colegas andavam na explicação e a minha mãe achava que eu também devia andar. Lá se informou com as colegas e apareceu-me a dizer que havia um professor fantástico, já com alguma idade, professor reformado, que dava expicações, que era melhor eu ir, sempre manteria a disciplina de estudar. Nessas coisas eu ia ver, tinha até alguma curiosidade. Uma casa na baixa, uma daquelas belas casas pombalinas (digo que é pombalina a partir da memória que guardo mas, na verdade, sei lá). Azulejos por fora, varandins. Tocámos à campainha e, quando a porta se abriu, ouvimos lá de cima: 'Pode subir'. Uma escadaria larga em madeira com um bonito corrimão. O senhor esperava-nos. Era pequenino, pullover coçado, lã deslassada, cabelo grisalho, ar um pouco especial. Entrámos numa divisão cujas paredes estavam cobertas por estantes com livros. Daquelas casas com alto pé direito, janelas até ao chão, uma mesa antiga num recanto. Qualquer coisa ali me intimidou. Acho que nem abri a boca. A minha mãe deve ter percebido que eu não estava a aderir. Lembro-me que ela perguntou o preço e que eu achei um exagero. Ele disse que eram lições individuais. Mal comecei a descer as escadas já ia a dizer que nem pensar. A minha mãe admirada: 'mas porquê?'' Lembro-me que disse que era um disparate de caro. A minha mãe disse que o preço não era problema meu. Mas fui categórica. Nem sabia dizer porquê. Aversão instantânea. Hoje sei bem porquê. A questão é que percebi que aquilo era a sério. Seria eu e o velho mestre, sem escapatória. Ora era o que me faltava era perder uma hora das minhas santas tardes a ter que prestar atenção a um professor que notoriamente não me deixaria pôr o pé em ramo verde. Mas hoje penso que o senhor deve ter percebido o meu total desinteresse pelo que ele dizia. E lembro-me daquela casa, tão incrivelmente bonita. 


Acabei por ir parar a um casal, pouco mais velhos que eu mas já com um bebé. Eram estudantes no Técnico, davam explicações para ganhar uns trocos, malta de esquerda, numa casa frequentada por tudo o que era reviralho, incluindo o José Afonso. O meu namorado da altura, que era de outra área, nada de matemáticas ou físicas, aparecia também por lá com a sua guitarra e dava belos concertos, o pessoal todo espalhado pelos sofás ou em almofadas no chão. Quando eles, esse tal casal, souberam que eu ia para lá ficaram preocupados: o que é que uma aluna de 18, 19 ou 20 ia para lá fazer? Na volta sabia mais que eles. Mas nunca houve problema porque, na verdade, eu andava lá porque o meu ex-namorado também andava e era uma maneira, que eu não assumia, para estar perto dele, e porque todos os meus amigos também por lá andavam e porque aquele ambiente era a minha praia. A minha mãe ia ouvindo falar daquele forrobodó e perguntava-me: 'Mas aprendes ou estudas alguma coisa?' e eu não a enganava mas dizia que era importante o convívio e que, parecendo que não, sempre íamos fazendo algumas coisas. Ela encolhia os ombros, sabia desde sempre que pouco havia a fazer. O meu marido diz-lhe: 'Não a educou', referindo-se a mim. A minha mãe ri e confessa: 'Não consegui. Sabe lá... Nunca foi de se deixar educar...' No entanto, ainda hoje tenta mas, claro, as esperanças em ser bem sucedida são cada vez mais diminutas.

Mas voltando ao tal casal de explicadores.

A casa deles era meio escura, parece que tinham aprendido a viver desconfiados. Mas, tirando isso, a informalidade reinava. Lembro-me de uma vez, todos em volta da mesa, o Bê, o explicador, à cabeceira e eu e a maltinha à volta. Como sempre, falava-se de mil coisas e, às tantas, o Jota, um dos meus grandes amigos, usou a palavra falo e detectei uns sorrisos e que, logo, o Bê quis mudar de conversa. E eu 'O que é o falo?' e ele a desconversar e o maluco do Jota e dos outros a cochicharem, a rirem, a quererem metaforizar e o Bê a mandá-los estarem calados e a querer voltar à matéria escolar. Mas eu percebi logo que tinha caroço naquele angu. Não desisti: 'Não vou parar enquanto não me disserem'. O Jota preparava-se para uma alarvidade mas foi logo atalhado pelo Bê. 'Xiu, que é isso?' e o Jota: 'Então... mas não é ela que quer saber?' e o Bê: 'E não sabes dizer de forma educada?' e depois, virando-se para mim, ele próprio subitamente corado, 'É o orgão sexual masculino'. E o Jota: 'Mas quando está teso' e logo o Bê: 'Está mas é calado. Já chega'. E eu morta de riso e de repente tudo a rir à gargalhada.


E, agora que aqui vou, estou com vontade de contar uma coisa do mais divertido que há, que se passou com um colega e presenciado por mim e por outros dois. Mas acho que não devo porque é coisa muito recente e é tão inusitado que não pode ter acontecido o mesmo com mais alguém à superfície da terra e, portanto, se isto for lido por uma das outras quatro pessoas que, de certa forma, participaram, fica logo a cena e os intervenientes identificados. E digo outros quatro porque, em cena, entrou uma mulher que desconhecíamos. Quando contei ao meu marido, quase sem conseguir parar de rir, ele disse: 'Era freira'. Neste domingo, voltei a lembrar-me disso e desatei outra vez na risota e o meu marido voltou a sentenciar 'Só podia ser freira. Só uma freira faria isso'. Não conto agora mas um dia tenho que contar porque uma cena daquelas não pode ficar por registar.

Claro que os apontamentos de Marcello Duarte Mathias não versam sobre episódios desta natureza. Pelo contrário, fala de pessoas públicas, políticos, escritores, refere livros, volta e meia cita pequenos trechos. Tudo de gente bem comportada, tudo ideias bem estruturadas e interessantes. Vai-se lendo e aprendendo, enquanto se partilham bons momentos de memória ou reflexão.

Assinalei algumas passagens para aqui partilhar convosco mas agora está a dar-me preguiça de me pôr a copiar. Portanto, calinas como a esta hora sempre me sinto, deixei-me por aqui ficar a molengar e a deitar conversa fora. E foi o que viram.


[Não digo que estou com sono para não levar outra desanda da minha filha: não faz sentido andares sempre a dizer que tens sono. Se tens tanto sono, porque não vais dormir? -- pergunta o roto ao nu (porque recebo mails dela a horas também impróprias e, feita moralista, também lhe passo lições de moral e saúde mental). Mas é um facto. Tive que me levantar cedo e, como sempre que tenho que me levantar cedo, feita estúpida acordo ainda mil horas mais cedo. E como o dia foi puxadésimo e, à chegada, ainda fui caminhar e comprar fruta aos indianos, tudo deu para tarde e, já se sabe, cair neste sofá é entregar-me, de alma e coração, nos braços de Morfeu. Ou seja, assim sendo, não há volta a dar: fico-me por aqui e espero que vocês fiquem bem].

As fotografias são de Helmut Newton e, claramente, não devem ter nada a ver com o texto. E quem canta Midnight Blues é Snowy White que não faço ideia se faz pendant com a conversa. E eu, com vossa licença, vou pregar para outra freguesia e vamos fazer votos para que amanhã a prosa tenha algum interesse.

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Um dia feliz a todos

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