quarta-feira, julho 23, 2014

O despertar da minha sexualidade, à mistura com história e geografia


No post abaixo já falei dos amigos que começam a cercar-se para ajudar a salvar o BES. Esqueci-me de falar do BESA mas isso é outro filme. Centrei-me nos amigos alemães que aí estão uma vez mais e também no Goldman Sachs, debicando aqui e ali, e ainda nos fundos, e em todos quantos farejam a carniça, a desgraça, o estado de absoluta carência.

Mas isso é a seguir. 

Aqui, agora, a conversa é outra.

Como é óbvio não me interessa nada que o Santana Lopes esteja a perfilar-se para Presidente da República ou que o António José Seguro ande numa campanha alegre a ver se consegue realizar o sonho da vida dele ou que o Marques Mendes todos os sábados se arme em comadre boa do cavaquismo ou até mesmo que o Passos Láparo ande a escrever cartinhas ao Aníbal Silva a mandá-lo fazer coisas como se estivesse  a dar instruções a um lombinha qualquer. São coisas que não mexem comigo, digamos assim. Tenho mais que fazer. Até lá não me doa a cabeça. Cantam muito mas não me alegram. Rebéubéu, pardais ao ninho. 


Poderia, é claro, falar da prepotência de um ministro sinistro como uma cobra venenosa que tudo faz para humilhar os professores que estão a caminho do desemprego ou para destruir toda a comunidade científica portuguesa. Mas isso requereria que eu tivesse um estômago mais resistente do que o meu. Falar do Nuno Crato ou falar da violência com que ele ataca os que sabem mais do que ele ou que querem aprofundar o conhecimento, revolve-me o estômago, revolta-me, repugna-me.


Portanto, adiante.

Agora, pensando nos professores e em quanto marcam a nossa vida, e talvez porque me apetece estar noutra, numa onda revivalista, vintage, coisa assim, deixem-me então retroceder no tempo.






Eu tinha uma professora de geografia que, aos meus olhos, devia ter perto de cem anos. Pensando hoje no assunto, admito que não tivesse tantos mas muitos teria certamente. Pequenina, direitinha, vestida como uma pequena boneca antiga, cabelinho branco pela nuca, vestidinhos com golinhas de renda, chapelinhos com redes ou rendinhas. Toda ela era uma gracinha. Parecia saída de um filme antigo ou de um postal de outros tempos. Falava baixinho, voz de velhinha querida. Na altura, os professores usavam cadernetas onde lançavam as notas, as faltas e outras observações. Ela, boazinha como era, em vez de punir, agraciava: dava estrelinhas aos alunos bem comportados. Era uma doçura. 

Mas, claro, era também uma vítima. Para os rapazes, as aulas de geografia eram uma paródia. Faziam toda a espécie de tropelias de que ela, bastante surda, nem se apercebia. Depois, se calhava ela olhar na direcção deles, disfarçavam, sorriam-lhe, diziam coisas queridas e ela presenteava-os com estrelinhas. O rapaz por quem eu estava loucamente apaixonada na altura, um dos piores em comportamento, claro está, era useiro e vezeiro em trocar-lhe as voltas. Tal como eu, ela também o adorava. Acho que ele deve ter ganho o máximo de estrelinhas.

Não me lembro do nome dessa professora e fico aborrecida por isso.

Nunca fui de decorar ou de me pôr a estudar concentradamente. Geralmente, o conhecimento era adquirido a partir do que aprendia nas aulas, do que lia nos livros, do que apanhava do ar. Ora, como daquelas aulas pouco se apanhava já que, com a vozinha baixa que ela tinha, apenas os que estavam junto a ela a conseguiam ouvir e já que a minha atenção era mais estimulada pelas aventuras que se passavam nas costas dela do que pela matéria em si, nunca soube muito de geografia. Mesmo depois, por mim, nunca foi assunto que me despertasse demasiado a atenção. Os países e respectivas fronteiras é assunto demasiado aleatório e mutável para eu querer fixar. Bandeiras, então é mentira. Conheço a de Portugal e pouco mais. Depois a questão orográfica, a fauna, a flora, isso assim, já me interessa um pouco mais mas de forma bastante relativa. Li um livro interessante do Professor Orlando Ribeiro e disso gostava. Mas sou geograficamente ignorante.

Outra pecha no meu conhecimento, e essa também grave, tem a ver com história. As razões são basicamente as mesmas.

A nossa turma era uma turma piloto. Inaugurámos, a título experimental, as turmas mistas. Juntaram os melhores alunos de cada ano anterior independentemente de serem rapazes ou raparigas. Por isso, porque naquela altura, não sei porquê, os rapazes tinham melhores notas, a turma tinha para aí uns 20 rapazes e umas 10 raparigas. Uma alegria para mim. Na turma havia uma predominância de meninos e meninas família o que, em certa medida, era sinónimo de rebeldias e maus comportamentos. Claro que nada que se comparasse com o que vim, anos depois, a encontrar quando fui professora que, aí, já era falta de respeito, falta de educação, baderna, insubordinação. Não, naquela altura, eram maus comportamentos mas com boa educação. Filhos de médicos, de industriais, de comandantes de marinha, de presidente de câmara, de presidentes de institutos, eram em grande número. Muitas vezes os desacatos sobrevinham de encararem e discutirem com os professores de igual para igual, coisa que, na altura, os professores não aceitavam.

Mas havia os casos mais bicudos. Esse meu namoradinho era dos piores. Aí as coisas eram mais graves. Lembro-me que entrava pela janela da chamada sala de ponto, roubava os enunciados dos ‘pontos’, copiava-os, distribuía-os. Ou pregava partidas aos professores ou desafiava-os. Por vezes era ameaçado de ser suspenso e foi várias vezes publicamente repreendido.

Tínhamos uma professora de História que era uma chata insuportável. Obrigava-nos a decorar o livro e assinalava como mal ou incompleta se a resposta não estivesse tal e qual as frases do compêndio escolar. Uma vez, num desses dias de teste, ouvi-a dar um grito: ‘Mas o que é isto?!?’. Não sabia de que se tratava. Então ouvi a voz dele lá atrás (estava sempre na última fila), muito calmo, ‘É o livro’. E ela ‘Que é o livro estou eu a ver. Mas o que é que o livro está a fazer aberto em cima da secretária??. E ele, calmo, desafiador, ‘Estou a copiar que é para não me faltar nenhuma vírgula’. Eu encolhia-me quando coisas destas se passavam, cheia de medo por ele, pelo que se ia passar a seguir. ‘Vais ter 0’. E ele, calmo, com a folha na mão, a levantar-se e a sair. E ela, outro grito, ‘Onde é que pensas que vais?’. E ele, rebelde, atrevido, ‘Vou sair. Se me impede de fazer o ponto, não estou aqui a fazer nada’. E ela, já mais a medo, a voz trémula ‘Senta-te e vê se acabas o ponto mas vou ficar com o livro’. E ele, gingão, malandreco, de novo a caminho do lugar, a dar-lhe o livro ‘Faça favor’. My hero.

A partir daí a professora passou a ser uma vítima. Na altura, usava uns vestidos de malha, justos ao corpo. Sempre que ele se lembrava, antes dela chegar, soprava uma camada de giz na cadeira onde ela se ia sentar. Ela escrevia o sumário no livro de ponto sentada e depois dava a aula a andar entre nós. E era para mim quase insuportável aguentar o riso ao ver que ela andava com duas bolas brancas na parte de trás do vestido, no que correspondia às nádegas. E a coisa ficava ainda mais caricata quanto ela era tudo menos sexy.

Eu ficava ainda mais perdida de amores por ele com estas coisas. Era ainda mais my hero. Apesar de tudo isto, era um dos melhores alunos da turma, uma inteligência fulgurante apesar de negligente. Mas a negligência dele tornava-o ainda mais sedutor.

Isso e um dente da frente partido. Uma vez, no verão, estávamos a passar o dia na casa de férias de uma amiga nossa. Para se armar em campeão, ele fazia peões de bicicleta, no ar, descia grandes ladeiras na bicicleta, sem mãos, depois, na areia, fazia travagens malucas que o faziam rodopiar. Era ele e outro a verem quem fazia mais disparates. Eu sempre derretida mas a adivinhar que aquilo ainda ia dar para o torto. Claro que deu mas, menos mal, a coisa ficou-se por um incisivo de cima, ali bem à frente, partido em diagonal. A boca inchada, sangue, e todo esfolado, de alto a baixo, braços, pernas. My hero. O que eu apreciei aquela bravura. Depois curou-se mas aquela falha no dente ficou e dava-lhe um toque de malícia que me deixava ainda mais enfeitiçada. 

Tinha uma letra horrível, mal se percebia.

O professor de matemática, um sujeito nervoso, passava-se com ele. Não percebia nada daquela letra. Uma vez, sentado à secretária (e, naquela altura, a secretária dos professores estava num estrado elevado) fazia a chamada e entregava os testes classificados. Quando chegou a vez dele, atirou-lhe o teste e disse ‘Esperteza saloia. Se essa letra ilegível é para ver se eu não percebo nada e marco como certo, estás muito enganado, o que não percebi marquei como estando mal’. Ele não fez esforço para apanhar o teste que tinha sido atirado e o teste foi parar ao chão, no estrado. Nestas alturas eu ficava assustada. Mas o meu amor, com aquela calma desafiadora tão típica nele, sorriu, deu meia volta e foi sentar-se no seu lugar. O professor deu-lhe um grito ‘Volta atrás e apanha o teste’. Ele sorriu e disse, ‘Eu não o apanho. Fico à espera que mo dê à mão’. O professor ficou branco. Fez a entrega dos testes que faltavam e depois ficou em silêncio. Um nervosismo terrível tomou conta do ambiente. De vez em quando o professor dizia ‘Não sai ninguém desta sala enquanto não vieres apanhar o teste’. Ele apenas sorria, calmo, desafiador. Quando tocou, o professor gritou, ‘Não sai ninguém!’.

Lembro-me do professor da aula seguinte assomar à porta. Lembro-me de eu própria querer ir apanhar o teste e do professor não me ter deixado. Mas não me lembro do desfecho. Provavelmente o professor saíu com o teste ainda no chão. Provavelmente o meu namorado recusou-se a pegar nele. Não me lembro.

Jogava muito bem futebol mas era de rastilho de curto. Volta e meia pegava-se à pancada com o arqui-rival, um outro tão betinho quanto ele mas da linha bem comportada. Na verdade, quando ganharam consciência cívica, o meu namorado tornou-se (des)alinhado com a esquerda revolucionária, a tender para o anarca e o outro virou de direita, CDS puro, que, na altura, era até quase heresia ser-se do CDS, tão à direita parecia ser.  Pegaram-se muitas vezes por minha causa mas eu, apesar dos problemas em que o meu bem amado se via constantemente metido, sempre o defendi e amei apaixonadamente enquanto sempre desprezei o outro, tão arrogante e que, quando queria parecer mal comportado, não tinha graça nenhuma. Veio a desempenhar um cargo público, claro. O meu bem amado ficou anónimo e presumo que continue a ser mal comportado.

Dos três eu era a que sabia menos geografia e menos história. Sempre foram os meus pontos fracos e uns dos pontos altos deles. Aliás um seguido a área do que hoje se designa por humanidades. Mas o meu bem amado, que também brilhava na física, seguiu o ramo das ciências.

Era irreverente e um caso bicudo de mau comportamento (o apogeu foi ter pernoitado na esquadra) mas a forma meiga e sensual como, com a ponta dos dedos, afastava lentamente o meu longo e pesado cabelo das costas para encostar os seus lábios a ferver ao meu pescoço, ainda hoje está bem presente na minha memória. Com ele percebi que o meu corpo tinha vida própria e no corpo dele senti, pela primeira vez, o efeito que o meu corpo poderia produzir num outro corpo. Eu era uma menina bem disposta e ele um puto rebelde e juntos descobrimos a nossa sexualidade.

Não tem conta as vezes em que, ao som do Bridge over troubled water interpretada pela dupla Simon and Garfunkel, dancei agarrada a ele, bem agarradinha, ele bem abraçado a mim, rosto contra rosto, ou eu com a cabeça encostada ao seu peito ou ele a arrepiar-me, beijando-me o pescoço. Tardes inteiras agarrados, no maior mel, inseparáveis.




Ou a conversarmos, cúmplices, amigos, de mãos dadas.


Começou aos 12 anos este amor, no dia em que, antes de uma aula ter início, a turma inteira se juntou, surpreendida, em volta da carteira dele. As carteiras eram de madeira e ele estava na última fila. Tão mal se portava que era posto de castigo no fim da sala e ali acabava por ficar. Nesse dia alguém descobriu que ele, com um canivete, tinha escavado o tampo da carteira. De ponta a ponta, em letras de forma de tamanho garrafal, gravou o meu nome e, por baixo, gravou I LOVE YOU. Eu nem queria acreditar. Olhei timidamente para ele, surpreendida. E, instantaneamente, apaixonei-me por ele. Claro que já andava encantada. Durante todas as aulas, lá de trás, ele atirava-me bolinhas de papel através de uma caneta a que tinha tirado a carga e por onde soprava. E fazia coisas como as que descrevi antes e que me faziam admirá-lo para além da conta. Aquela declaração de amor gravada na madeira foi apenas a gota de água.

O nosso amor durou até aos nossos 16 anos, altura em que, por sermos ambos temperamentais e orgulhosos, nos zangámos para nunca mais. Já contei isso. Amanhã, se estiver para aí virada, conto mais coisas.


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Relembro: sobre o BES e sobre os abutres que começam a chegar-se falo no post a seguir. E, ao mesmo tempo que escrevo, faço figas para que tudo dê certo. Tomara. Tomara. De caminho, mostro um vídeo de curta duração no qual dá para se perceber de que forma a Goldman Sachs e os mercados em geral mandam no mundo.

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Perdida, perdida de sono, e incapaz de passar os olhos pelo que acabei de escrever, despeço-me por agora. 

Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quarta feira e, não nos esqueçamos, quarta feira passada, semana dobrada.

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2 comentários:

Concha disse...

Excelentes memórias e como sempre contadas com simplícidade e graça.Simon and Garfunken sempre um prazer escutar.Bom resto de semana.

Anónimo disse...

Um país que poderá, quem sabe, resvalar para o cómico-trágico, com, Santana Presidente e Tó-Zé PM. Mas, apesar de tudo, se compararmos com estas avantesmas actuais, Belém e S.Bento, até é bem mais “agradável” o panorama. Embora circense. Geografia: sempre gostei e era bom aluno. Fascinava-me o conhecimento dos países, a sua localização, capitais, cidades, cultura, religião, língua, recursos, etc. Ainda hoje gosto. História: sempre me fascinou! Desde a Antiguidade Clássica até aos dias de hoje, atravessando os diversos períodos. A História ensina-nos muita coisa, embora não se repita (aqui, talvez ressalvasse um aspecto: depois do que sucedeu a Napoleão, ao invadir a Rússia, Hitler deveria ter aprendido a lição. Ainda bem que não aprendeu e assim a sua ofensiva soviética, que acabou da forma que sabemos e veio a ter um efeito significativo do ponto de vista militar, na derrota da Alemanha Nazi). Tive um professor de História, numa ocasião, que era padre, o Padre Joaquim, que usava uma batina sebenta, cheia de nódoas, que dizia palavrões, mas que era um tipo divertidíssimo, bom coração, embora pretendendo passar-se por mauzote quando se tratava de nos chamar á atenção e por quem, todos nós, tinhamos um carinho imenso, um tipo alto e forte, sempre com a barba por fazer, com um rir forte, umas mãos grandes, um castiço! Dos poucos professores que recordo com saudade. Há professores que passam nas nossas vidas e outros que nos deixam marcas, pela positiva. Tive um, no Porto, no Brotero, o Dr. Sollari Allegro, que foi outro extraordinário ser humano. Igualmente divertido, bom coração, um carácter espantoso, com uma boa disposição e, tal como o Padre Joaquim, este já em Lisboa, competentíssimo. Em ambos os casos, os resultados finais eram quase todos de excelência. Combinavam empatia, bom ambiente, exigência, competência, boa disposição, carinho e a coisa resultava. E ficaram, em todos nós, as boas memórias deles e o termos passado nos exames, mais tarde. Ser um bom professor implica muitas qualidades, não basta ensinar, mas saber ensinar, saber transmitir conhecimentos e saber cativar o aluno para a matéria em causa. Tive também um excelente professor de Matemática, que nos fez gostar dela e virmos a ser bons alunos, porque a abordava de uma forma simples, descomplexada e solicitando-nos provas todas as semanas. Depois, procurava explicar-nos onde tinhamos errado, para posteriormente acertarmos. E falava da Matemática com carinho, com vista a uma maior proximidade ente nós e aquela matéria. E resultou. Teve excelentes resultados. Tivemos, por causa dele. Quanto a romances e lutas, creio bem que todos, ou quase, passámos por situações semelhantes. Tive também um caso de que hoje me rio, de “andar á luta”(como se dizia) por causa de uma rapariga, colega e o tonto do namorado, acabando castigado por o ter magoado e com um outro colega, de quem acabei, mais tarde, amigo, por me ter pisado um cachecol (prenda de Natal). Atirei-me a ele e foi um sarilho. Mais um castigo. Enfim, coisas das nossas juventudes. Boa Noite!
P.Rufino