No post abaixo falo de um lugar clandestino habitado por silhuetas para onde gosto de me esgueirar para dançar um tango e ouvir palavras de amor (tudo se passa apenas em sonhos, mas paciência).
Mas aqui, agora, o tom é outro.
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Que soe a música do Romance
(Mozart)
O sol em Setembro é muito doce e eu aproveito o seu calor brando e a sua luz suave, andando pelos caminhos em que por vezes as árvores fazem uma sombra rendilhada, sentindo sobre a minha pele a macieza de quem se prepara para se despedir.
Estou in heaven. Agora que estou a escrever, muito tarde, noite avançada, a temperatura baixou bastante. Há instantes, abri a porta que dá para a rua e estive aqui fora, gosto de sentir este fresco. As árvores tapam a lua. Poderia aventurar-me mais, às escuras, para a poder ver, nua e branca como eu. Mas tenho algum receio. E está frio.
Embora sozinha, a estas horas tardias, não me aventure para muito longe da casa, gosto de estar na rua de noite, ouvindo os sons vagabundos que não se percebem de onde vêm. Bichos? O vento? Recordações?
Mas se agora está frio, de dia esteve um sol quente, bom. A hora que prefiro é o cair da tarde. Os cheiros intensificam-se, os pássaros aquietam-se, as sombras ficam elegantes.
Estive deitada no banco de pedra que está ao pé do grande pinheiro que não pára de crescer. Se tivesse o corpo coberto talvez a caruma que tapava o banco fosse uma cama macia. Assim, para não me picar, retirei-a, deitei-me directamente na pedra. Gosto de olhar o céu através da copa das árvores.
Ali estive, vendo os desenhos que as sombras desenhavam no muro. Lembrei-me de Barceló que, na entrevista ao Expresso, diz que anda a usar apenas o branco nas suas pinturas. Aqui havia também o cinza desenhando arabescos no muro que também já não é branco, o tempo vem enriquecendo a sua cor.
Do banco onde me encontrava ia sondando com o olhar os caminhos que, em tempos, imaginei e que agora vejo como os via dentro dos meus sonhos.
Labirintos abertos por onde é bom andar, por onde é bom ir vendo como o tempo os vai mudando.
Daqui a nada será inverno, o verde do musgo invadirá o chão, os muros, nascerão cogumelos imprevistos, as árvores escorrerão da frialdade da noite, os pássaros estarão escondidos.
Mas agora ainda nem sequer é Outono, agora é apenas o Verão que começa a despedir-se.
E depois, aos poucos, a luz foi ficando mais dourada e eu, encantada, desloco-me como uma gata procurando os melhores recantos, aqueles em que a luz se detém mais demorada, mais dourada.
Pode ser entre a renda de uma teia, a luz quase prateada, aprisionada entre um esboço de folhagem: e eu ali fico, maravilhada. Nada se compara à beleza das coisas simples.
Na mesma árvore coexistem as folhas ainda verdes e as que já estão folheadas a ouro. Tanta a fragilidade destas (de todas, aliás). Sei que estão assim douradas porque o seu fim se aproxima. Mas para que vou estar a pensar nisso? Agora ainda aqui estão e isso é o que interessa, que alguém as olhe e as ache belas (porque a beleza só sabe bem se virmos reflectido no olhar dos outros o encantamento que a beleza desperta).
Gosto de fotografar o beiral ao longo do ano. O céu vai mudando, a folhagem também. Na Primavera a folhagem está viçosa, o céu incerto; no Verão está assim, de um verde quente, quase dourado, o céu despreocupadamente azul; não tarda, no Outono, vai estar cor da terra à qual as folhas estão quase a voltar, e o céu começará a toldar-se. No Inverno os ramos estarão nus, prontos para acolherem os rebentos que virão para renovar a vida e o céu estará branco ou cinzento, carregado de água.
E eu, cá em baixo, olhando o beiral e o plátano e o céu e vendo o tempo que passa.
Se estou na cozinha a esta hora do sol que se põe, perco-me a olhar cá para fora mas hoje olhei a janela da cozinha pelo lado de fora e quase me vi lá dentro, parece que eu já estou nas coisas deste lugar. Gosto tanto da minha cozinha, tão luminosa, tão boa para se estar lá a preparar as refeições. Há uma chaminé larga sobre o fogão e, quando estamos cá fora, se há comida ao lume, sentimos o cheirinho bom que sai e se espalha no ar, misturando-se com o perfume da figueira, dos cedros, dos pinheiros.
Continuo a andar pelos caminhos, por entre as árvores. Podia ser uma gata, eu. Às vezes passa aqui à porta uma gata sinuosa (ou um gato, não sei). Olha cá para dentro, curiosa, e depois segue. Tolera, portanto, a nossa presença. Ou podia ser um pássaro. Há aqui muitos pássaros. Sinto-os mais do que os vejo. Já pensei: vou arranjar uns pratinhos com sementes e vou espalhá-los por aí, em cima dos muros ou dos bancos, para ver se os atraio, quero vê-los de perto, quero que se habituem a andar ao meu lado, quero que me ensinem a voar.
Espreito por entre o alecrim, a folhagem da azinheira e do pinheiro, que dourado que está tudo, que doçura que há no ar. Vejo como a luz dourada ilumina também as outras mulheres que aqui habitam, as de Rivera, as de Szenes, outras.
Até que o sol quase se põe, começa a esfriar, terei que vestir qualquer coisa ou que me recolher. E é já de dentro de casa, à porta, que espreito o pôr de sol, o céu que fica encarnado, as árvores que adquirem um ar secreto.
Depois ficou de noite. Tão silenciosa, tão boa. A casa em sossego, os meus livros aqui desarrumados ao meu lado, vocês aí desse lado velando por mim. Lembrei-me agora de ir espreitar as estatísticas para poder escrever isto: só nesta última hora (entre a 1:19 h e as 2:19 h) estiveram aqui, junto a mim, trinta e seis pessoas, grande parte de Portugal mas doze do Brasil, duas dos Estados Unidos, duas da Venezuela e uma da Alemanha. Mas não são números. São anjos bons, são amigos, são luzes brilhando no horizonte? Não sei. Mas sei que gosto muito de estar a escrever e saber que vocês estão aí.
Amanhã irei de novo lá para fora, colher raios de sol, apanhar figos, pôr outros a secar, ver se ainda há amoras, apanhar uvas, comê-las logo de seguida, estão doces como mel, percorrer caminhos à procura de sombra que o sol, de dia, está quente, tentar descobrir pássaros no meio das ramagens, depois deitar-me a ler, ao sol, sentindo a luz a aquecer docemente a minha pele.
Mais tarde, à noite, já olhando o rio, aqui virei de novo para vos deixar as minhas palavras. Bem hajam vocês, por gostarem de vir fazer-me companhia. Obrigada mesmo.
Mais tarde, à noite, já olhando o rio, aqui virei de novo para vos deixar as minhas palavras. Bem hajam vocês, por gostarem de vir fazer-me companhia. Obrigada mesmo.
*
Um rasto de água arde sobre o corpo,
cresce mansamente dentro dos olhos,
salta-me húmido pelos lábios.
Pequeno fruto trazido pela aurora,
um jogo de volúpias azuis ao anoitecer.
Enlouqueço nas trevas, ébrio do teu cheiro,
quando a ausência se desenha
e sinto o estrangulado desejo da rosa,
a fria e frágil flor em que te desfolhas.
Luz, labareda, sangue e fogo.
Um sismo desliza-te pelo ondular do ventre,
se eu chego na lonjura do tempo,
se te cavalgo no cerrado campo do corpo.
Uma silhueta vem na sombra do silêncio:
toca-te os olhos, desce sobre o mar
['433. Um rasto de água ardia sobre o corpo' de Homo Viator]
«««»»»
Permito-me relembrar o Hernando's Hideaway em duas versões dançantes já aqui abaixo.
E, por agora, nada mais - apenas quero ainda desejar-vos um domingo cheio de graça.
5 comentários:
Olá UJM!
Gostei....e muito!
É sempre bom lê-la mas este texto com estas fotos a acompanhá-lo é mesmo um regalo!
Mais uma vez obrigado e um Bom Domingo!
Um abraço
O seu texto é maravilhoso. Essa é mesmo a sua casa? Para quem vive num apartamento na cidade, isso cria-nos uma "inveja" (...)
Bjs
A "sagração" de Setembro numa composição admirável.
Abraço
Gosto do que escreve e de como escreve. Transmite-nos sensações, momentos.
E em breve chegará, de mansinho, uma das minhas preferidas estações do ano, o Outono, a outra é a Primavera.
Por aqui vivem-se momentos serenos, embora com algum vento.
Boa semana!
P.Rufino
Olá UJM,
Lindo! Lindo este cair de tarde de Setembro, descrito por si com tanta doçura e beleza! Á medida que a lemos sentimo-nos cada vez mais a seu lado, a percorrer esses caminhos misteriosos tal as sensações que nos consegue transmitir, os cheiros, a frescura do fim de tarde, a luminosidade frouxa a atravessar as árvores e as folhas douradas a despedirem-se do Verão, etc. etc. Direi também que é a sagração da vida e das coisas simples da natureza!
Nós é que somos uns privilegiados por a termos a Si, qual anjo da guarda a vir até nós, todos os dias, mesmo sem o merecermos!
Obrigada, UJM por nos ensinar a observar a natureza e fazer acreditar que a vida vale mesmo a pena ser vivida, que mais não seja, para desfrutarmos destas sensações maravilhosas que a natureza nos oferece todos os dias.
Um beijinho e bem haja.
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