domingo, dezembro 09, 2012

Isabel Millet, a mulher que, de novo, deu vida a Guilhermina Suggia, que está no céu a tocar violoncelo aos pés de Deus. Uma Imagem no Espelho.


Ontem saí mais cedo. Mas agora anoitece muito cedo. Trânsito, noite, falta de lugares para estacionar. Depois de um dia de trabalho, reuniões, avaliações, contratos para rever, telefonemas, eis que me afasto da torre de vidro para procurar um outro mundo.

Venho em contra corrente. 

Chego já perto das seis e meia e logo eu que gosto de ser pontual. Conheço o prédio mas não sabia que ali funciona uma escola de música.

Isabel Millet tinha-me enviado o convite de que aqui também vos dei conta.







Quanto entrei estava a ter início a sessão. Ouvia-se Guilhermina tocando violoncelo. O palco iluminado e, na  mesa principal, ao centro, uma mulher luminosa, sorridente, Isabel Millet. De um dos lados, o Maestro Leonardo de Barros. Do outro, a representante da Chiado Editora, uma mulher jovem e bonita de que não registei o nome, italiana, visualmente toda ela italiana.

O Maestro falou da sua relação com a autora do livro, falou do livro, mostrou fotografias e o seu sorriso e a sua afabilidade revelavam a ternura por Isabel Millet. A editora italiana falou do prazer em editar tão belo livro.

Depois Isabel falou da sua relação com Guilhermina.  A sua mãe foi Isabel Cerqueira, aluna, discípula e amiga de Guilhermina. Não tendo filhos, Guilhermina deixou a casa (justamente na Rua da Alegria, nº 665) em herança a Isabel Cerqueira. Foi, pois, na casa que tinha sido de Suggia que Isabel Millet, filha de Isabel Cerqueira,  cresceu. Quadros, móveis, cortinados, tudo naquela casa lembrava Guilhermina. A mesa onde comia, a cama onde dormia tinham sido as de Guilhermina. Até a empregada Clarinda continuou ao serviço dos Millet.

E foi de sua mãe, uma mulher reservada, algo triste, que Isabel também falou, de como lhe era difícil arrancar recordações sobre Suggia. Mas como ela as evocava, espontaneamente, e como se foram gravando na memória de Isabel que, agora, com este terceiro volume termina a escrita que dedicou à grande violoncelista e à sua casa. E foi assim, dando a voz a sua Mãe, que Isabel escreveu o livro. E dando também a voz a Guilhermina. E mostrando-nos cartas, fotografias, a agenda que, conta, é como uma ampulheta, o registo até ao fim.

A seguir Isabel Millet leu trechos do livro bem como Rute Cardoso, actriz na Casa Conveniente, vestida com peças de roupa de Guilhermina, um belo vestido longo e um casaco quente.



Rute (ou Ruth?) Cardoso lê excertos do livro, e quase parece Guilhermina Suggia


Com uma voz agradável, muito convincente, vestida de Suggia, Rute Cardoso trouxe as palavras da diva que, na penumbra, ouvimos encantados.

Isabel tinha também, para partilhar connosco, duas gravações em que se podia ouvir distintamente a voz de Guilhermina, em duas entrevistas.

Depois leu uma carta de Guilhermina dirigida a Pablo Casals, seu grande amor, pedindo-lhe, em tom humilde, que arranjasse maneira de ir assistir a um último concerto dele. Não chegou a ir, morreu dois meses depois.



Carta de Guilhermina suggia a Pablo Casals
A letra de uma mulher aberta ao mundo, ao futuro
(apesar de escrita a dois meses da sua morte)


je voudrais pas mourir avant de vous entendre, cher Maitre et de vous revoir.

Começa assim a carta, escrita em francês. Para mais fácil compreensão, Isabel Millet leu a carta em português.

Estive bastante doente ultimamente e apesar de me sentir um pouco melhor, não sei se continuarei por muito tempo a minha carreira.

(...)

Espero que compreenda a alegria que me dará ao dizer-me que poderei ir e que terei lugar em qualquer parte para ficar 10 dias perto de sua casa.

(...)

Creia-me sempre sua admiradora dedicada - lembra-se da menina de 11 anos que ia a Espinho para ter lições consigo?

Até breve, espero

Guilhermina Suggia


Seguidamente Isabel Millet leu a parte do livro relativa à morte da diva e, enquanto lia, com voz emocionada, interrompia de vez em quando para, sorrindo, referir particularidades relativas a Guilhermina.

Quando Suggia sentiu que a morte podia chegar a qualquer momento,mandou chamar a grande amiga inglesa, Mrs.Melville:

'Venha depressa', mandou dizer por telegrama.

Mandou chamar a manicura, para que lhe arranjasse e pintasse as unhas; mandou arranjar o cabelo e pediu que lhe passassem bâton nos lábios: já tinha mandado pôr de parte o vestido com que queria que a vestissem. Recomendou que lhe cobrissem as pernas, pois tinha-a por demais inchadas.

Preocupava-se com a cerimónia da sua morte, como se fosse, este, o último espectáculo que dava.

Aconteceu no dia 30 de Julho do ano de 1950, pelas onze horas da noite.

Um pouco antes, havia pedido que lhe deitassem o violoncelo, o Montagnana, a seu lado; pois não era, ele, o prolongamento do seu corpo e da sua alma?

O espírito de Constantino elevar-se-ia, unindo-se ao seu no último momento, pois todos os violoncelos possuem uma alma física e uma alma etérea.

Constantino era o cavaleiro das altas planícies, aquele que trespassava as montanhas e a levava à profundidade das águas.

Pediu, em seguida, a Clarinda que trouxesse uma garrafa de champanhe e servisse todos quantos estavam presentes. E que se servisse também a si própria, e a ela, Guilhermina Suggia.

E celebrou, assim, este grande acontecimento.


Isabel Millet leu, por fim, uma notícia saída tempos antes e que, naquele contexto, vinham muito a propósito:

A violoncelista, a divina, a única, a incomparável, criou para seu uso uma constelação e também uma janela aberta para a terra inteira. Só lhe faltam as asas de anjo para poder subir ao Céu e tocar violoncelo aos pés de Deus.



A seguir, Isabel Millet fez servir champanhe.

Apresentei-me, claro, conversámos um pouco, e pedi que me autografasse este novo livro, o terceiro da trilogia Imagem no Espelho, o 'Rua da Alegria Nº 665', a casa de Guilhermina Suggia.



Isabel Millet autografa o livro para mim


Isabel Millet contou-me que a mãe ainda leu o primeiro livro e que gostou, ela que gostava de tão poucas coisas, tinha gostado do livro da filha e Isabel Millet sorria, enternecida, por ter sentido o reconhecimento da parte da mãe, Isabel Cerqueira. 'Já não viu os seguintes. Mas está aqui...' e eu disse que sim. Sabe bem ter a mãe por perto nos momentos importantes da nossa vida.



Os dois livros anteriores da triologia Imagem no Espelho e o último,
autografado para mim, com a dedicatória escrita ao lado da fotografia de Isabel Cerqueira


Ao pegar no livro para autografar para mim, Isabel folheou-o e escolheu a página onde iria descrever a sua dedicatória. Escolheu a página em branco ao lado da fotografia da mãe, Isabel Cerqueira, uma mulher também muito bonita. Sensibilizou-me que o tivesse feito.

Quando saí de lá vinha emocionada. Aquela sala, aquele ambiente, que diferença para o mundo cá fora. Ali tudo era afabilidade, doçura, a ternura dos amigos de Isabel Millet, a sua filha, uma cultura tão interiorizada, um amor à música, à escrita. Tudo tão em contra corrente.

Ali nada era espuma, artificialidade. Se todo o mundo fosse assim, tudo seria tão melhor.


*

Aos que não viram ainda o post abaixo, permito-me sugerir que o visitem para ouvirem uma gravação com a grande Suggia no violoncelo.

*

Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo domingo.

4 comentários:

Maria disse...

Amiga,
Estive a ler o post debaixo e este.
Guilhermina merecia esta homenagem.
Gostei de ver, que se manteve lúcida, vaidosa e mulher, até ao fim.
Abraço
Mary

Um Jeito Manso disse...

Olá Mary,

Segundo Isabel Millet ela encarou os últimos e difíceis tempos como uma última representação. Preparou-a e viveu-a até que parou de respirar. Impressionante. E as preocupações tão femininas, como diz, lá estiveram sempre presentes, o cabelo, o baton, o vestido, a preocupação para que não se vissem as pernas inchadas. Uma mulher corajosa, também.

Um abraço, Mary.

Fernando Ribeiro disse...

Um apontamento que encontrei num blog, que já não existe e que era só sobre Guilhermina Suggia, e que reproduzi há mais de 2 anos no meu próprio blog:

Finda a guerra de Espanha, Franco substituiu, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, Serrano Suner, que era seu cunhado, pelo general Jordana. Este era amigo dos portugueses. Por isso Salazar determinou que, na visita que Jordana vinha a fazer a Portugal, fosse aqui recebido o melhor possível. Entre as festas que se preparavam, além dos banquetes, recepções, tourada à antiga portuguesa, etc., organizou António Ferro em S. Carlos um breve recital de violoncelo com Guilhermina Suggia...

Um dia, o Ferro apareceu a Salazar muito embaraçado:

- Temos um problema com a Guilhermina Suggia. Ela pede um cachet de sessenta contos pela sua participação. Que é quanto lhe pagam em Londres e não quer baixar o preço dos seus recitais...

Salazar ponderou:

- Realmente, sessenta contos por tocar durante meia hora, é muito...

E de repente, fitando o Secretário da Informação:

- Olhe lá, o senhor sabe tocar rabeca?

Ferro, surpreendido, gaguejou:

- Não, não sei.

- Eu também não. Não há outro remédio: temos de pagar os sessenta contos à senhora.

Os sessenta contos foram depois dados pela artista a casas de caridade. Simplesmente, não descia o seu cachet.

Um Jeito Manso disse...

Caro Fernando Ribeiro,

Gostei imenso de conhecer esse pormenor que diz muito da personalidade dos intervenientes. Gostei muito que o tivesse trazido aqui.

Guilhermina Suggia era uma mulher temperamental, de forte personalidade. Tenho gostado bastante de conhecer a sua vida.

Muito obrigada.

Um abraço!