Mãe Maria
Maria Bethânia
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Lídia saía do emprego cansada e já enervada. Aliás, também era assim que se levantava todos os dias, cansada e enervada.
Neste dia, tal como nos outros dias, sem saber se havia de ir depressa se, pelo contrário, arranjar um pretexto para se atrasar, descia o caminho que a levaria à paragem de autocarro.
Neste dia, tal como nos outros dias, sem saber se havia de ir depressa se, pelo contrário, arranjar um pretexto para se atrasar, descia o caminho que a levaria à paragem de autocarro.
Até ao autocarro chegar, ensaiava desculpas sem saber a quem as havia de apresentar.
Depois, já no autocarro, hesitava em parar junto ao supermercado ou ir logo para casa. Pensava, o pão dá até amanhã, de manhã já só havia duas maçãs e já estavam um bocado murchas. E há as fraldas e os resguardos que se não comprar hoje, tenho que comprar amanhã. Suspirando, desceu para ir ao supermercado.
Enquanto se aproximava, pensava no que iria fazer para o jantar. Ainda lá tinha um resto de canja, talvez uns ovos ou um queijo fresco. E lembrou-se outra vez que no dia seguinte tinha que passar pelo Centro para ir buscar a receita. Outra vez. Ou era para marcar consulta, ou para ir buscar prescrições para análises ou receitas, ou era ir mostrar as análises, sempre isto, sempre, horas nisto e sempre enervada, o tempo que tudo aquilo demorava.
No supermercado reparou numa mulher elegante, umas calças justas, uma blusa justa sem mangas, cabelo comprido, ágil toda ela.
Comparou-se com ela e achou-se pesada, cabelo baço, raízes brancas à vista, uma blusa larga sem graça e os olhos, sabia, conhecia tão bem os seus olhos, tristes, sempre tão tristes.
Para se consolar, pensou que a outra devia ser bem mais nova. No entanto, passado um bocado, um miúdo de uns sete ou oito anos apareceu com um livro gritando pela avó, se podia levar aquele livro. Lídia desanimou, já avó? querem ver que afinal é mais velha que eu?
Comparou-se com ela e achou-se pesada, cabelo baço, raízes brancas à vista, uma blusa larga sem graça e os olhos, sabia, conhecia tão bem os seus olhos, tristes, sempre tão tristes.
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Para se consolar, pensou que a outra devia ser bem mais nova. No entanto, passado um bocado, um miúdo de uns sete ou oito anos apareceu com um livro gritando pela avó, se podia levar aquele livro. Lídia desanimou, já avó? querem ver que afinal é mais velha que eu?
Cabeça baixa, comprou o que tinha a comprar e lá foi, rua fora, um saco pesado de cada lado. Pensamento positivo, auto estima, toda a gente lhe diz isto, bons conselhos, pensa Lídia. Mas como? E para quê?
Ainda não tinha chegado junto à porta do prédio e já o coração estava a disparar. Como estarão as coisas hoje? Sempre aquele pavor. Pousou os sacos, viu o correio. Nada. Nunca havia uma carta, nunca. Só facturas, folhetos, coisas sem interesse. Uma carta de uma amiga, um postal de uma prima, um bilhetinho de um admirador desconhecido, nunca.
Subiu o elevador. O coração acelerado, uma aflição, sempre aquela angústia. Um dia chegaria e teria um susto, descobriria o que em sonhos tantas vezes lhe aparecia. Um corpo caído. Encostou o ouvido à porta. Nada, nem um som.
Abriu devagar, sempre tanto medo, tanto. Meu Deus, fazei que esteja viva, fazei.
Não valia a apena chamar, não ouviria. Pousou os sacos. Foi à sala. Lá estava a mãe de olhos quase fechados, sentada onde a tinha deixado de manhã, o prato, o copo, o pacote de sumo ao lado. A D. Fátima tinha lá ido à hora de almoço tratar da higiene, dar-lhe o almoço, os comprimidos e, depois, a meio da tarde, outra vez para lhe dar o lanche.
Então mãe? Bem à frente dela, bem alto.
A mãe acordou da sua letargia, Estiveram aí uns poucos. Traziam uns sacos, remexeram tudo, levaram os teus anéis. Estou farta de dizer que devias esconder tudo. Agora vieram cá, levaram tudo. Entraram por aí, por essa porta, e eu em me mexi. E apontava para uma estante.
Lídia não se alterou, era sempre a mesma conversa e agora confundia a estante com uma porta. Perguntou-lhe Então e esteve bem? A D. Fátima levou-a a dar uma voltinha pela sala, levou-a até à janela?
A mãe, com ar aborrecido, fez que não ouviu. Lídia repetiu mais alto. A mãe respondeu Ela hoje não veio cá, estou aqui sozinha desde ontem. Tens que a mandar embora, só cá vem para roubar tudo, já levou os lençóis todos.
Lídia encolheu os ombros. Depois, cansada, Mãe, veja se não dorme agora; porque não presta atenção à televisão? Estava mais distraída. Assim já sabe que de noite não tem sono, não dorme e não me deixa dormir, mãe, e era quase uma súplica, precisava tanto de dormir uma noite descansada.
Lídia encolheu os ombros. Depois, cansada, Mãe, veja se não dorme agora; porque não presta atenção à televisão? Estava mais distraída. Assim já sabe que de noite não tem sono, não dorme e não me deixa dormir, mãe, e era quase uma súplica, precisava tanto de dormir uma noite descansada.
A mãe encolheu os ombros, Não ouço nada e Lídia não percebeu se a mãe dizia que não a tinha ouvido a ela ou se estava a justificar-se de não ver televisão.
Cansada, Lídia foi mudar de roupa, passou pelo espelho e viu uma mulher a envelhecer, desviou o olhar, foi para a cozinha. Ligou a televisão da cozinha. Só tretas, só doenças, mortes, roubos, aumentos de impostos, roubos e mais roubos, a televisão só dá disto, pensou.
Aqueceu a sopa, fez um cerelac, arranjou um tabuleiro e levou à mãe.
Não quero, ainda não tenho fome, e o tom é quase agressivo. Vá lá mãe, já é tarde, a ver se não vai para a cama de barriga cheia, tem que comer. Mas a mãe insiste, não quero, ainda há bocado acabei de lanchar. Até há algum tempo atrás Lídia confrontá-la-ia então, mas não disse que a D. Fátima não veio? mas agora já não diz nada. Põe-lhe um pano no colo, ajeita-a, põe-lhe a colher na mão. Mas, como a mãe não se mexe, começa a dar-lhe a comida à boca. A mãe não quer, afasta a colher com gestos de criança, fecha a boca, depois diz a minha mãe esteve aí há bocado e disse que eu estou bem assim, que não preciso de comer muito. Lídia não se admira, Está bem, mãe, mas agora coma lá, vá lá, mãe, mas o cansaço na voz de Lídia é pesado, apetece-lhe desistir, apetece-lhe descansar.
Cansada, Lídia foi mudar de roupa, passou pelo espelho e viu uma mulher a envelhecer, desviou o olhar, foi para a cozinha. Ligou a televisão da cozinha. Só tretas, só doenças, mortes, roubos, aumentos de impostos, roubos e mais roubos, a televisão só dá disto, pensou.
Aqueceu a sopa, fez um cerelac, arranjou um tabuleiro e levou à mãe.
Não quero, ainda não tenho fome, e o tom é quase agressivo. Vá lá mãe, já é tarde, a ver se não vai para a cama de barriga cheia, tem que comer. Mas a mãe insiste, não quero, ainda há bocado acabei de lanchar. Até há algum tempo atrás Lídia confrontá-la-ia então, mas não disse que a D. Fátima não veio? mas agora já não diz nada. Põe-lhe um pano no colo, ajeita-a, põe-lhe a colher na mão. Mas, como a mãe não se mexe, começa a dar-lhe a comida à boca. A mãe não quer, afasta a colher com gestos de criança, fecha a boca, depois diz a minha mãe esteve aí há bocado e disse que eu estou bem assim, que não preciso de comer muito. Lídia não se admira, Está bem, mãe, mas agora coma lá, vá lá, mãe, mas o cansaço na voz de Lídia é pesado, apetece-lhe desistir, apetece-lhe descansar.
Resolve esperar. Vai ela jantar. Senta-se sozinha na mesa da cozinha, olhando a televisão. Adriano Moreira numa entrevista a Fátima Campos Ferreira, uma grande entrevista, percebe, mas não consegue concentrar-se. De repente, sem motivo aparente, começa a chorar. A vida é uma coisa boa, pensamento positivo, pois, é bom de dizer, o pior é o resto... Chora com pena de si própria, sem solução, enredada neste destino a que não pode nem quer fugir. Se pudesse falar com alguém, ao menos isso. Se alguém aparecesse para a abraçar e para tomar conta dela e da mãe.
Lembra-se da mãe, a querida mãe Maria, a mãe quando era nova, enérgica, a pôr a mesa, estendendo a toalha, passando com a mão para alisar, toda ela vivacidade, ou a fazer a cama e os lençóis faziam um ventinho bom quando ela os sacudia, e à noite sentava-se a organizar o álbum de fotografias e era bonita, arranjava-se e, depois, Lídia lembra-se também de si própria, menina cheia de vida, cheia de alegria, a vida pela frente, pensando que ia ter um namorado, um marido, filhos. E agora estava ali sentada a uma mesa de cozinha, sozinha, lágrimas escorrendo, pensando que piores dias ainda estavam por vir e que teria que os enfrentar sozinha.
Depois viu as horas. Tarde. Voltou para a sala, a mãe dormia. Vá lá mãe, acorde, tem que comer, vá lá que tem os comprimidos para tomar e não os pode tomar de barriga vazia, tem que comer qualquer coisa, mãe, vá lá. A mãe abre os olhos, ar agressivo, deixa-me, sempre a chateares-me, estúpida, vai chamar a minha filha, quero ir-me embora daqui, quero ir para casa. Vais ver o que te vai acontecer quando souberem o que me fazes.
Lídia não diz nada. Tenta dar-lhe a sopa mas a mãe afasta-a com violência e a colher vai parar ao chão, isto já está frio, não quero nada disto, que porcaria, só me dão porcarias, vais ver o que te acontece, vais ver.
Lídia vai buscar papel e limpa o chão. Depois diz, vá, mãe, vamos lá então para a cama, agarre-se a mim, faço outra papa e dou-lha na cama. E pensa, agora vai ser um drama para lhe mudar a fralda. Chora em silêncio, cansada, mas não diz nada para não enervar a mãe.
Mais de uma hora depois, depois de ter deitado a mãe, fralda limpa, medicamentos tomados, meia dúzia de colheres de cerelac, Lídia dá-lhe as gotas para dormir. Por um momento pensa que devia aumentar a dose mas tem medo, não o faz. Lembra-se que uma colega, anos atrás: deu gotas a mais à mãe, também já não conseguia passar mais noites mal dormidas e no dia seguinte a mãe não acordava e ela apanhou um susto de morte.
Depois, finalmente, quando estava despachada, ficou sem saber o que fazer. Sentou-se na sala, pegou numa boneca de pano que comprou muito tempo atrás numa feira de artesanato, sentou-a ao colo, sempre era uma companhia. Abriu o computador, leu umas coisas. Sempre era uma companhia, também o computador.
Acordou algum tempo depois, angustiada, assustada. Tinha tido um sonho estranho, e, assustada, logo pensou em ir espreitar a mãe, será que lhe tinha dado as gotas na dose certa? e o sonho não lhe saía da cabeça, era mais nova, e estava sozinha, triste, os olhos tão tristes e vazios, tão perdida, sempre tão triste ela, e tinha um seio branco e inútil de fora do roupão. E ao seu colo dormia um inquietante cão branco, também muito triste.
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As pinturas são de Lucian Freud (1922-2011), pintor inglês, nascido alemão, neto de Sigmund Freud.
[Caso pretendam ler esta história de seguida (do último post para o primeiro), queiram, por favor, pesquisar aí do lado direito, mais para baixo, a etiqueta 'Lídia - a mulher muito triste'].
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Hoje deu-me para tristezas. Peço desculpa se vos contagiei.
Pode não parecer mas desejo-vos um dia alegre. Aproveitem a vida, meus Caros Leitores!
20 comentários:
Tão realista a triste realidade de tantas filhas e também, a das suas mães. Tão bem descrito, a acção e os diálogos. Belo guião.
TBM
Tanta tristeza e tanta verdade.
Infelizmente são as cenas de um quotidianoo que se repete em muitas casas. Mas ainda há os que não têm a filha e vivem na angústia da solidão e do abandono.
Muitos beijos
Teresa
É assim a depressão. Um novelo de que as pessoas não conseguem libertar-se. Às vezes é necessário pedir ajuda, mas falta iniciativa, dinheiro. Uma tristeza.
Uma sugestão: Escola de sofrologia caycediana (Lisboa, Porto, Santarém).
As pinturas são muito bonitas. Não conhecia este pintor, vou procurar.
Um abraço
É, com efeito, um texto muito real e muito forte, simultâneamente, ternurento.
Poucas considerações se poderão tecer acerca desta matéria, tão comum nos nossos dias, a par de situações de total abandono e alienação.
Uma sociedade que se isolou e que passou a viver para dentro de si mesma, criando guetos de onde não encontra forma de sair.
A mãe da estória, tem ainda uma filha capaz de lhe providenciar algum conforto e afecto, mas... e afilha, quando chegar à situação em que a mãe se encontra?
Querida UJM
Ontem à noite ainda cheguei a ver o seu post lá do meu painel, impressionou-me o rosto da mulher, triste, sofrido.
Também, o nome 'Lídia' induziu-me ao pensamento Ricardo Reis. Mas, sem ainda ler o texto na íntegra, parece-me mais a 'Luísa' de Gedeão.
Mas vou ficar nesta expectativa porque quero ler este texto com calma...portanto, voltarei.
Ah!As mulheres, fortes, exageradas, matronas e, porque não? sensuais, de Paula Rego, do seu post anterior, tomaram conta do seu espaço... :)
Beijos
Olinda
Amiga:
Não sei se me comoveu mais a mãe ou, a filha.
A mãe, pobre ser já sem saber quem era, a filha amarrada a uma vida que lhe cortara a dela.
Tantos casos assim!...
A mulher mais nova amava a mãe, tentava ampará-la, mas quem a amparava a ela?
A mãe tinha tido um passado feliz. Ela teria futuro?
Tanta coisa que a sua história me lembrou, tanta mulher sem ontem nem amanhã. Só têm o hoje. Um hoje triste e doloroso.
A história de tantas mulheres.
A realidade é sempre triste.
Abraço
Mary
Tenho andado com muito trabalho, e chego ao fim do dia cansada. Tenho vindo aqui espreitar, mas não leio tudo.
Hoje li este post e vou ler os que não li por estes dias.
Este seu texto é tão real.
Por muitos motivos. Porque muitas vezes sonhamos uma vida diferente, que nunca chega a acontecer. Porque a vida não é fácil e é cada vez mais díficil num país à beira da rotura. Porque as pessoas vivem cada vez mais sós...
Não há nada mais triste que o peso da solidão, que torna mais pesado qualquer problema.
Este texto hoje deixa-nos uma certa angústia por pensarmos que há tantas realidades iguais e tantas pessoas que são heróis anónimos que lutam diariamente para manter viva a esperança.
E o primeiro ministro veio anunciar mais um contributo para a tristeza e a depressão deste triste país.
Não conhecia este pintor e gostei muito das pinturas.
Um beijinho e um bom fim-de-semana
Um texto triste mas muito real e actual. Infelizmente é um quadro quase comum na nossa sociedade, a tristeza, a demência e a depressão unem-se numa grande resignação em que o amor é o único aconchego que aquece as almas solitárias e que sobrevive a tanta vicissitude.
As pinturas impressionaram-me, sobretudo o rosto da pobre senhora de idade, dependente, com o olhar muito distante, provavelmente a sonhar com os seus belos tempos de menina e moça... Ainda saberá sonhar?
Texto triste, mas dá para meditar como será a nossa velhice no futuro? Ainda haverá estes cuidados, este carinho entre as famílias, ou já se terão esbatido no tempo?
Olá TBM,
A gente vai vivendo, vai passando pelas situações que a vida nos vai pondo pela frente, ou vai ouvindo a experiência de amigos e, por vezes, acontece isto: vontade de dar voz a casos que vivem estes sofrimentos em silêncio. Quem passa por isto acaba por ficar submerso pois esta é uma situação que não dá descanso. E sei que nem disposição, às vezes, se tem para falar no assunto. São sentimentos que se misturam.
Ontem, quando aqui me sentei, começou a sair isto e tive que acabar porque parecia que a Lídia era eu e que estava a desabafar. E acabei emocionalmente exausta, quer crer?
E o estranho é que estas duas mulheres não me saem da cabeça. Que coisa, não é?
Muito obrigada pelo seu comentário, TBM, e receba um abraço!
Olá Teresa-Teté,
Estas situações são mesmo dramáticas e esgotantes. São situações para as quais nunca existem fins felizes, não é?
Costumo gostar de escrever histórias fantasiosas, coisas animadas. Odeio lamechices pois para tristezas já nos chegam as preocupações dos nossos dias.
Mas ontem apareceu-me isto e agora parece que são pessoas de verdade e conheço de facto tantas situações deste género, sei muito bem o que é lidar com isto (e, em parte, sei por experiência pessoal) que até me parece que é natural falar-se disto.
São situações que se vivem no silêncio das casas, mas, para quem as vive, talvez ajude falar-se disto. Não sei. Eu sei que ajuda saber de outros casos, saber que há muita gente a passar por isto e à procura das melhores soluções.
Sei-a preocupada com estes assuntos e por isso agradeço a sua compreensão.
Um beijinho Teresa-Teté.
Olá leitora de A Matéria dos Livros,
Nunca tive nenhuma depressão (felizmente) mas já convivi com quem padecia dessa tristeza que absorve toda a energia e toda a alegria de viver. É uma coisa terrível e trata-se com profissionais mas, do que sei, primeiro há um período em que a pessoa não percebe que precisa de ajuda, acha que é apenas uma tremenda infelicidade que se abateu sobre si.
Não conhecia a escola (e o conceito) que refere. Já googlei e é uma realidade que desconhecia e que parece bem interessante.
Uma vez mais penso que são situações em que, quem passa por elas, deverá pedir ajuda. A pessoa não deve deixar-se afogar sem soltar um ai.
Mas, escrevendo isto, até pode parecer que me pus a escrever esta história de forma intencional. Mas não foi isso que aconteceu. Fui escrevendo nem sei como e, depois, como escrevi acima, acabei angustiada e tive que me interromper porque eu já era aquela mulher.
A pintura de Lucian Freud é assim, descarnada, sem compaixão, a luz crua sobre rostos e corpos desprotegidos. E nem a ele próprio se poupou. Pintou-se velho, tendões e carnes velhas, rosto com sombras, tal como se via ao espelho, pintando. Pintou a Rainha Isabel como uma mulher de idade, também sem 'dourar a pílula'.
Ontem, ao escrever, estava aqui a pensar onde iria arranjar imagens que estivessem em consonância com a visualização que eu estava a fazer e logo me ocorreu este pintor.
Obrigada, Leitora, e um abraço!
Olá Bartolomeu,
Esta mulher que ontem tomou conta da minha escrita, andou hoje, e ainda anda, a falar comigo. Parece que sei mesmo o que se passa com ela, parece que me apetece desabafar. E eu que costumo escrever histórias a tender para o erotismo, para a sedução, para a brincadeira, agora está a dar-me para isto. Não sei explicar. Tomara que não seja deprimente para quem me lê.
Esta nossa sociedade tem, em si, contradições insanáveis. Por um lado as pessoas vivem até muito tarde mas, por outro, vivem com debilidades e demências incuráveis. Depois há as dificuldades práticas, as pessoas que vivem longe umas das outras, que vivem longe do trabalho, que têm pouco dinheiro.
Por vezes nem existe abandono por maldade. Mas existem tantas dificuldades que não se consegue, que não há forma, nem energia, tudo é complicado.
E depois há estes casos, em que são duas as pessoas abandonadas (como na minha história, a mãe e a filha). A mim custa-me muito saber destas mulheres ou homens que vivem sozinhos com um pai ou uma mãe velha. É um peso, uma responsabilidade, um desgaste que me custa a perceber como se consegue ultrapassar sem um forte apoio. Mas as pessoas não escolhem inteiramente o seu destino e, por isso, pode acontecer que se vejam, na maior solidão, a ter que enfrentar sozinhas uma dificuldade desta natureza.
E também penso: o que será destas pessoas sem família, um dia que envelheçam? Mas, enfim há sempre esperança, e se agora estão sozinhas, quem garante que para o ano ainda o estarão, não é?
Agradeço as palavras, Bartolomeu, e tenho esperança que, falando nisto, estejamos a fazer companhia e a mostrar compreensão por alguém que nos esteja a ler, estando nesta situação.
E um belo sábado, Bartolomeu!
Olá Olinda,
Pois, a Luísa que, estafada, gasta, subia, subia a calçada. Quando esta mulher me surgiu, surgiu.me logo como Lídia. Acho que na minha cabeça uma Lídia é alguém com alguma fragilidade mas, também, com uma graça, talvez uma graça não muito aparatosa mas, ainda assim, uma graça especial.
A fragilidade está à vista e na minha cabeça é assim que eu estou a viver a vida dela: sofrimento, cansaço, dedicação, amor.
Quanto à graça ainda não se viu, não é?
Ocorreu-me este pintor, Freud, e, quando fui buscar algumas pinturas, era mesmo destas duas mulheres que eu estava à procura. São coisas que não se explicam, não é?
Mas escrever o que ontem escrevi, 'mexeu' comigo, sabe. Fiquei angustiada, sem saber como se lida com isto de uma forma menos esgotante, fiquei angustiada como se a Lídia fosse eu.
E estou com vontade de me manter dentro da pele dela.
Um beijinho, Olinda, e muito obrigada pelas suas palavras!
Olá Mary,
É mesmo, Mary, tantos casos assim, tantos. Ainda no outro dia um senhor lá da aldeia 'in heaven', se queixava amargurado sobre a doença da mulher, um Alzheimer já avançado. Já não se alimenta sozinha, só quer andar atrás dele, mas já nem o conhece nem aos filhos, já não sabe nada mas está sempre a perguntar coisas mas coisas sem nexo. Só que ali é uma aldeia, os filhos moram em casas ao lado, uma das filhas tem lá um cafézito e a mãe pode lá ficar sentada durante o dia e, ao almoço, a filha dá-lhe de comer. Mas uma situação destas numa cidade, todos longe uns dos outros ou a trabalharem, já viu como é?
Estas situações são tristes e aflitivas para quem tem a doença e são uma tortura psicológica e um desgaste físico para quem trata destas pessoas. Quando a isto se junta a solidão e o dinheiro contado, é uma coisa esmagadora.
De qualquer forma não me resigno a aceitar que a realidade seja sempre triste.
Já me conhece, Mary, não sou de deixar cair os braços. Andei com esta mulher hoje na minha cabeça e só me ocorria que eu deveria arranjar uma saída feliz, arranjar uma solução que fosse boa para as duas. Mas não me ocorreu, só sentia o cansaço e o medo dela. mas não vou desistir. Tenho que trazer esperança a estas pessoas, tenho que ser capaz de mostrar que a realidade não tem que ser triste.
Mas, sabe Mary?, a tristeza de Lídia parece que tomou conta de mim. Que coisa, não é?
Um abraço, Mary, e não se deixe contagiar por mim. Nem pensar. Isto a mim passa-me. Gosto de andar contente, gosto de falar de coisas felizes.
Olá Isabel,
isso de que fala é uma coisa que me faz pensar sempre muito. O que leva umas pessoas a seguirem por uma via que corresponde àquilo com que sonhavam e outras que vêem o tempo passar, levando consigo as oportunidades? Eu não sei. Acho que é o pequeno acaso, acho que são sempre pequenas e quase imperceptíveis coisas.
Mas, no caso em que as coisas não aconteceram como se sonhava, acho que assim como o acaso as levou até onde estão, o acaso as poderá levar agora para outro lado. Há é que estar-se atento e disponível. Acho eu.
Mas a solidão, concordo consigo, deve ser uma coisa terrível. Eu, pela minha vida que tem sido afortunada, nem posso dizer que saiba bem o que é a solidão. Mas dos casos que conheço, é das coisas mais terríveis. É uma parede que isola as pessoas, é um peso em cima da cabeça.
Por isso, quem se sinta só, deve também falar. Há tanta gente só que, se os 'sós' se juntarem, arranjam muita companhia. O isolamento é mau, perigoso. Seja sob que forma for, quem se sinta sozinho e a precisar de apoio, deve falar e fazê-lo sem vergonhas. Não há vergonha nenhuma nisto. É bom partilhar experiências e sentimentos pois, em conjunto, podem surgir apoios preciosos.
Lucian Freud transmite na sua pintura a crueza da vida real. Ali não há ficção. é a vida vista de frente.
Ouvi o primeiro ministro aqui em casa sozinha e estive, na primeira parte, à espera do que ia sair dali. Mas, quando ele anunciou as suas novas medidas, desatei a gozar com ele mas a gozar à grande. que falta de vergonha ele tem. Continua o confisco de dinheiro à população e diz que é para criar emprego. Acho que ele pensa que está a falar para mentecaptos. Arrasa com o rendimento das famílias, o consumo baixa, o comércio fecha, tudo definha e aquele homem diz que é para criar emprego?
Mas ainda não me preocupo pois só me preocupo com coisas concretas. Ele diz que aquilo é para 2013. Ora até lá muita água vai correr sob as pontes. Portanto, pode ser que não aconteça nada disto. Assim todos saibamos bater o pé de forma que ele perceba que não está a lidar com mortos-vivos nem com gente com miolo de galinha.
Não se preocupe ainda, Isabel.
E um beijinho e um belo sábado!
Olá Maria Eduardo,
Pois é, bolas!, parece que deixei toda a gente triste ao ler isto. Que coisa. Eu que gosto é de animar as pessoas. Mas saíu-me isto. Tal como já escrevi, eu também fiquei angustiada com isto.
Mas é bem verdade que há tanta, tanta gente a viver situações assim. na minha família mais chegada, vivemos agora uma situação um pouco parecida com o que descrevi.
Quem se ausenta da sua própria mente mas ainda tem momentos de lucidez e se apercebe da sua dependência e do que está a causar nas pessoas que ama, sofre muito e, frequentemente, tem vontade de acabar. Quem assiste, em pessoas que ama, a este mergulho na demência também sofre muito. Mas sobre este sofrimento há também uma pressão e um desgaste que levam à exaustão e isso por vezes traz consigo a culpabilização. São sentimentos que se cruzam e que tornam muito difícil a vida de quem os vive.
Não sei como será daqui por uns anos, quase sem pensões de reforma, sem segurança social, toda a gente com maiores dificuldades.
Mas pensando e falando nisto, talvez vão surgindo soluções e as pessoas que se sentem sozinhas talvez se sintam mais acompanhadas.
Um abraço, Maria Eduardo, e desejo-lhe um bom sábado.
Um texto pungente que sendo "long and sharp", daria um excelente guião para uma curta-metragem do drama de muitas vidas.
Tenha um bom fim-de-semana
Abraço
Olá jrd,
Pois é, long (mas não sei se sharp; não o estava a ver assim mas talvez).
Vá lá saber eu porquê, ontem estava assim e saíu-me isto e de tal forma me tomou de assalto que hoje estava capaz de continuar a viver a vida dela.
Mas a conversa do Passos Coelho tirou-me do sério e lá consegui deixar as duas sofridas mulheres a descansarem.
Tem graça dizer isso do guião (e já a TBM o disse) pois eu, quando estou a escrever, gosto de visualizar as 'cenas'. Por isso, arranjo geralmente maneira de ilustrar ou com pintura ou com fotografia. Mas podia ser um filme, sim. Era coisa que eu gostava de fazer, sim. Nunca tinha pensado nisso mas era capaz de ser coisa de que gostasse, sim.
Obrigada.
Um bom sábado, jrd.
Olá outra vez, UJM
Só hoje volto a este texto para o ler com todo o vagar que ele merece.
Neste momento a história já está completa na minha cabeça, até ao momento em que a deixou ontem...
Já lhe posso dizer, de novo, como aprecio a sua escrita, pela emoção e verdade que nos transmite. Porque fala de vidas vividas no limite e todos nós nos identificamos com elas, num momento e outro das nossas vidas.
Obrigada, UJM.
Beijinho
Olinda
Olinda,
Sabendo-a uma leitora exigente e senhora de vasta cultura, só posso ficar babada (babadésima...) com as suas palavras. Escrevo sem pensar, sem me restringir, escrevendo como as palavras me soam e, por isso, fico muito contente por me dizer que a emoção que sinto ao escrever é sentida por quem me lê. É muito bom saber isso.
Obrigada.
Um beijinho, Olinda!
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