segunda-feira, setembro 05, 2011

Festa do Avante: uma animada festa temática, uma feira popular, um festival de verão. Fui lá fazer a reportagem.


Perguntaram-me se este domingo queria aproveitar bilhetes para a Festa do Avante. A primeira reacção foi que não.

Há muitos anos deu-me a curiosidade, ouvi falar em artesanato, fomos, os miúdos atrás. Ainda era em Lisboa, talvez na Ajuda, não me lembro bem.

Estava um calor horrível, muita poeira. Os miúdos tinham sede. Beberam. Depois tinham fome. Fomos para comer e havia filas e todos já arreliados comigo, 'o que é que estamos aqui a fazer?', e depois em todo o lado toda a gente nos tratava por tu e por camarada e eu sem saber como dar seguimento à conversa, eu que não sou dada a estas familiaridades. Lembro-me que lá acabámos por comer uma comida de sabores intensos nuns pratos de plástico, no meio de animados 'camaradas'. E eu, para justificar a incursão, trouxe uma garrafa coberta por cortiça. Quando, cá em casa, são feitas limpezas profundas e saem à cena objectos estranhos que não vêem a luz do dia senão nestas ocasiões, lá aparece a garrafa. Nessas alturas coloca-se sempre a questão, 'mas o que é que isto ainda cá está a fazer?'. Mas custa-me deitar fora, ao fim destes anos todos ainda não se ter partido, ainda não ter desaparecido, é um verdadeiro símbolo da resistência.

Resumindo: nunca mais lá pusémos os pés.

Mas, agora, para me convencerem, usaram um argumento certeiro, aliás, O argumento: 'que bela reportagem fotográfica podias lá fazer...'. Bingo.

Lá fomos, eu de máquina a postos.

Tinham-nos dito que não havia como não dar com aquilo, tudo sinalizado.

Qual quê?! Lá andámos às voltas, a perguntar aqui e ali. Sinalizado depois de lá se estar, como é costume nesta terra.

Mas enfim, lá démos com a Festa do Avante. Ao chegar a um cruzamento, um montão de miúdos negros, alguns de bicicletas. Logo um nos pergunta: 'É para o Avante?'. Que sim. 'Então, venham atrás.'. Lá fomos, atrás do nosso guia.

De bicicleta, ágil, levou-nos para um terreno baldio atras de uns prédios, terra batida, uma árvore. Quando estacionámos, naquela poeira e no meio de um montão de carros, ouvi vozes, barulho de talheres.


Um grupo de rapazitos acampados, pequenas tendas, mochilas, ali mesmo - foi o primeiro contacto com o espírito da coisa. Um misto de festival, festa popular, feira de província.

Lá fomos, então. Imensa gente, música, muita cor, muita animação.


Barracas, barraquinhas, artesanato, Alentejo, Viana do Castelo, ..., Cuba, Timor. Aventais bordados, estatuetas africanas. Uma grande feira, uma festa do povo. Muitos jovens, muitos velhos, muita gente de todas as idades, muita gente com ar de quem vem do campo, de quem vem de longe, muitos homens e rapazes de tronco nu, muitos de boné, homens e mulheres de boné, muitos de bóina com uma estrela, muitas mulheres com saias compridas, ar hippie, muitos com ar revolucionário, outros apenas a beber cervejas, cabelos com rastas, muitas mulheres com ombros à vista com grandes tatuagens, muitas crianças, muitas bandeiras.


Os sítios onde se comia, longas bancadas cobertas, a deitar por fora, tudo a comer nos pratos de plástico do costume. E, por todo o lado, o cheiro a tasquinhas de petiscos, cheiro a feira gastronómica, uma mistura de cheiros, carne à portuguesa, feijoada, febras, enchidos, pizza.


O calor não parecia incomodar aquelas pessoas. Todos se cumprimentavam, tudo no maior espírito de feira, de festa, conversando mesmo debaixo daquela soalheira.


Muita gente estendia-se na relva, uns dormiam, outros simplesmente descansavam ou faziam horas para o discurso, muitas famílias faziam picnic à sombra.


E depois há os espaços mais culturais, uma feira do livro, uma feira do disco e uma bienal de artes, esta com pouca gente.


Tirando o irrelevante facto de os quadros estarem quase todos tortos, vi lá obras de qualidade, o espaço era fresco e bem organizado. Gostei de ali estar.

Mas, ali, quem faz a festa são mesmo as pessoas. E, se em grande parte dos casos, os apetrechos revolucionários como as boinas, parecem uma coisa deslocada no tempo e no espaço, outros casos há em que, dada a graça dos utentes, funciona até como um interessante complemento de moda como era o caso do belo moreno deste este grupo.


Não almoçámos lá nem ficámos para os concertos nem para o momento apoteótico que é o discurso do Jerónimo de Sousa (que, vi na televisão, esteve muito bem, uma presença forte, um discursos fluente naquele seu enfatizado tom de voz - contudo, como sempre, mais do mesmo; pode o mundo virar-se do avesso, podem os muros ruir, podem os modelos falir, que a conversa é e será sempre a mesma).

A impressão que me ficou é que é um recinto em que se realiza uma animada festa temática, que tem como motivo os quentes anos revolucionários de décadas atrás.

Toda a gente se produz de acordo com esse dress code, e há um ar de nostalgia, de fraternidade na luta, de saudosos dos movimentos hippies libertários, dos cordões de solidariedade, Timor Lorosae, Cuba livre, sempre, sempre ao lado do povo, cantares chilenos, mantas incas, peruanos, alentejo em luta, a terra a quem a trabalha, o povo unido jamais será vencido. Camaradas. Cerveja, ganza, amizade, noites ao relento. Camaradas. Che. Bandeiras ao alto, bandeiras ao ombro. Avante, camaradas, avante.


E dou por mim a pensar: mas estas pessoas, tantos jovens, estão felizes como se, ao estarem aqui, estivessem a protagonizar alguma coisa de marcante e, no entanto, enquanto aqui andam de tshirt de Che Guevara e de bandeira às costas, ou em tronco nu, radiantes, lá fora o país desanda e afunda-se nas mãos de pessoas sem qualquer competência.

E dou por mim a pensar: mas estas pessoas que aqui estão, convencidas que são revolucionárias e 'contra as políticas de direita', na prática, ao votarem contra o PEC 4, foram as que puseram esta gente no governo.

Não sei se entre os dirigentes do PCP reina a inocência, se o cinismo, se o oportunismo, se o simples instinto de sobrevivência. Não sei, palavra que não sei. Mas, nos simpatizantes que ali vi, aparentemente reina sobretudo a gosto pela pândega ou a alienação da realidade ou a inocência.

Mas não sei, há coisas que tenho dificuldade em compreender.

6 comentários:

Isabel disse...

A única vez que fui à Festa do Avante foi no Alto da Ajuda e no ano de 1979. Recordo o ano porque na altura só tinha um filho que deixei com os meus pais.
Calor de arrasar! Naquele tempo ainda havia Verão. (Hoje não esteve mau). E os camaradas que estavam no dia em que Um Jeito Manso foi à Festa tambem estavam no dia em que eu fui. Recordo um alentejano com um garrafão de verga na mão a verter o vinho para o copo e olhando para mim ofereceu-me dizendo: camarada beba um copo conosco e coma brôa com chouriço!
Serão estes camaradas, agora menos jovens que continuam a ir à Festa porque os jovens a camaradagem é outra.
E não é que agora me lembrei que no dia em que fui à Festa, quando chegámos a casa os meus pais tinham tido a visita de uns familiares. Ao terem conhecimento onde tinhamos ido comentaram: Eles são comunistas!?
Uma pessoa já não pode ir à Festa... digo eu. E foi só uma vez.
Isabel

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel,

Gostei de ler as suas palavras que reflectem ambientes similares aos meus. É isso mesmo.

E sabe, hoje ao falar à minha mãe que ontem tinha ido à Festa do Avante, ela quase saltou de espanto: Foste? Tu? Porquê?

Lá lhe expliquei que aquilo tem graça, é uma mistura de frequências e, presumo, de motivações que dá uma vivacidade engraçada ao ambiente.

E tirei fotografias que me fartei...!

Isabel disse...

A pergunta que a sua mãe lhe fez hoje foi-me feita pela minha mãe à 32 anos.
Se ontem lhe dissesse que ía à Festa não sei como reagiria. Mas mesmo que eu quisesse não podia ir pois não a deixava só.
A minha querida mãe dentro de dias faz 100 anos, ainda está lúcida e com muitas histórias de vida, umas boas outras menos boas.
Ao ver nas notícias os directos da Festa, comentava: Tanta gente e dizem que a vida está má!
Isabel

Um Jeito Manso disse...

100 anos?! É obra! E ainda com boa cabeça, que bom.

A minha ainda não chegou aos 80 e, felizmente, ainda está bastante bem. Tomara que viva ainda muitos e bons anos também com boa cabeça. Por enquanto ainda nos ajuda bastante, especialmente com arranjos de costura. E farta-se e fazer quentinhos casaquinhos de lã para os bisnetos.

Mas imagino o que diria a sua mãe se visse aqueles enormes restaurantes da festa do Avante, a deitarem por fora, cheios, cheios, e com os pratos a 10 euros ou mais (como referi, não almoçámos lá mas fui reparando): 'Crise? Qual crise?!'

Anónimo disse...

"Podemos lutar, mas nem sempre vencer, mas deixar de lutar é perder sempre!"
A próxima vez que for à Festa do Avante, vá de espírito aberto e sem preconceitos, aquilo é mais do que que o senhor descreveu. Mas pronto, o tempo um dia ditará a razão.
Volte sempre, porque temos todo o gosto em receber pessoas como você.
Hasta siempre.

Um Jeito Manso disse...

Caro Anónimo,

Acertou quase na 'mouche'. Lutar sim, mas não lutar por lutar.

Veja o que é que o País ganhar com as lutas do PCP contra o governo Sócrates e contra o PEC.

É preciso lutar sim, mas pelas causas certas e tendo em atenção as consequências da nossa luta.

Deitar abaixo o governo anterior, para estarmos agora como estamos, não sei se foi uma luta muito racional.

De resto, a festa do Avante para mim foi aquilo que descrevi e acho que é bom que existam espaços para que as pessoas se encontrem, exteriorizem as suas energias.

No entanto, de concreto e prático, tirando a angariação de fundos que será o principal móbil da Festa, não vejo que dali sai alguma outra coisa - mas também não creio que dali mais devesse sair.

Também acho que se deve lutar pelo desenvolvimento, pelo fim da pobreza - mas de uma forma pensada, articulada, coerente, olhando os efeitos das acções, olhando o longo prazo.

Agora mobilizar as pessoas para andar na rua em manifestações com palavras de ordem estafadas parece-me uma inutilidade.