sexta-feira, setembro 10, 2010

Carlos Queiroz despedido, Carlos Cruz condenado, uma história de crime e castigo. E os outros?




Carlos Cruz foi à entrevista da Judite de Sousa e, veemente e emocionado, ele, o homem confiante e bem sucedido de há tempos, agora com pálpebras inchadas, afirma repetidamente a sua inocência. Explica o que lhe aconteceu com razões em que não quer acreditar, insinua cabalas que diz achar inverosímeis, diz que há razões políticas para as quais não vê fundamento, refere pré-convicções, pressão da comunicação social e por aí fora. E diz que recebe muitas mensagens de apoio, que vai fundar um movimento social de apoio à vítima da justiça.

É natural este súbito apoio: somos bichos tribais. Sempre que a oportunidade se proporciona, aí vamos nós, pouco mais que animais irracionais, brincar aos bons contra os maus. E é assim que, tendo antes fechado os olhos ao abandono de Timor, tempos depois, vestidos de branco e de velas na mão, fazemos vigílias; é assim com os ingleses coitadinhos a quem desapareceu a filha, por quem rezamos missas, para logo depois os insultar no passeio.

Agora é isto: movimentos de apoio nem sei bem a quê, com direito a estatutos, encabeçados pelo Carlos Cruz.

Mas vejamos: se ele tiver razão, é caso para fazermos todos uma revolução, invadirmos tribunais, expulsarmos das guaritas em que se acobertam polícias, investigadores, procuradores, queimarmos processos, queimarmos tudo, porque todos, em conjunto, teriam ferido de morte os mais elementares princípios de Justiça, que é um bem de primeiríssima necessidade, porque todos se teriam conluiado para porem em prática uma farsa malévola, kafkiana, em que todos se teriam orquestrado, seguindo milimetricamente um guião urdido por alguma alma misteriosa e genial. Mas porque fariam isso? Para tramar o Carlos Cruz?!?! Mas o cidadão Carlos Cruz é quem para que várias classes profissionais, apenas para o prejudicar, pusessem em causa o seu profissionalismo, mérito e honra? Nesse caso a motivação seria ainda mais bizarra, mais ridícula.

Mas, deixemos, por ora, isso e aguardemos pelos próximos passos. Iremos percebendo de que cavernas tenebrosas a natureza humana é feita.

Mas há uma coisa que não referi anteriormente e que quero aqui deixar escrito. Quaisquer pedófilos comprovadamente identificados devem ser punidos e bem punidos. Há perversões insuportáveis e a de obter prazer à custa da violação de crianças ou jovens (ou de quem quer que seja) é uma delas. As nossas crianças não poderão viver em paz se o crime da pedofilia não for exemplarmente punido.

Mas pior, bem pior, é quem tem à sua guarda crianças desfavorecidas, sem família, e, sabendo que são usadas como objecto sexual, compactua, fecha os olhos, ignora, ou, pior ainda, favorece ou, pior ainda (se é que neste assunto faz sentido usar escalas, pois é tudo excessivamente mau), conspurca também o corpo e a alma dos miúdos.

É a Casa Pia enquanto instituição, os seus dirigentes e os órgãos governamentais que tinham essa tutela, que são os primeiríssimos culpados - e aqui não há equívocos, não são precisas provas periciais, testemunhas, bilhetes da auto estrada ou contas de telefone a provarem que o que o menino disse que tinha sido no dia 12 de Fevereiro de há 8 anos às 13 horas e 15 minutos afinal não podia ser.

Aqui é simples: entre que anos se passou este vil comércio? Pois bem, durante esse período, quem foi responsável pela guarda desses meninos é culpado de não ter exercido essa guarda.

Que a Casa Pia era o supermercado, que nos jardins de Belém circulavam carros a ‘contratar’ miúdos, que pelo Parque Eduardo VII andavam sempre rapazinhos Casapianos a prostituírem-se, toda a gente comentava, era um dado adquirido. Mas essas crianças estavam à guarda, à responsabilidade de quem?

Não é crime mais grave vender droga do que consumir droga? Então porque é que nos concentramos numa meia dúzia de supostos consumidores de sexo infantil (quando, contabilizados, ao longo dos anos em que isto se passou, devem ser, de facto, centenas que, sabe-se lá porquê parece passarem ao lado do assunto) e não acusamos também os fornecedores de tão infeliz e sofrida ‘mercadoria’?




E agora falemos de um epifenómeno pós silly season: finalmente foi solucionado o pseudo-problema Carlos Queiroz. Era inevitável. Não só não tem jeito para algumas coisas (nomeadamente, ao que parece, para seleccionador – coisa de somenos…) como se pôs a jeito.

Mas, uma vez mais, e não questionando a lógica da decisão de o demitir, não se deveria ver mais longe?

Quem é que o escolheu? Quem é que fez aquele contrato com ele (a que depois quiseram matreiramente fugir)? Quem é que conduziu com os pés todo este processo? Quem são as inenarráveis figuras que há anos a fio se alaparam aos lugares que ocupam, gerindo o futebol português de forma saloia e geneticamente ultrapassada (até no visual).

Toda aquela gente deveria levar uma mangueirada, não é assim que se está hoje neste mundo globalizado e mediatizado, tem que haver alguma modernidade a par do profissionalismo, transparência, boa comunicação, boa gestão de todas as matérias. Ponham-se ao lado o Platini e o Gilberto. Não dá para perceber as abissais diferenças?

Platini um homem cosmopolita com uma vida no futebol  Gilberto Madail, antes de ter ficado quase louro



Se não dermos um passo atrás, se não virmos as coisas em perspectiva, se ficamos felizes apenas com a imolação dos Carlos desta vida, aquilo a que assistimos não passará de uma encenação para épater le bourgeois. Muita poeira, muito confetti, a plebe toda aos urros a festejar o ter-se  'feito justiça', enquanto os maiores causadores de problemas continuarão livres e prontos para os próximos delitos e dislates.
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