terça-feira, outubro 21, 2025

Crianças de ninguém

 

Não vou escrever muito pois este é daqueles assuntos em que as palavras se me extinguem. Nem é uma questão de não conseguir conceber, é mesmo mais que isso, é uma repulsa profunda, uma revolta que vem do mais íntimo de mim. Pensar que alguém se aproveita da inocência e da incapacidade de defesa de uma criança para a molestar sexualmente deixa-me transtornada.

Giuffre (then Virginia Roberts) around the time she met Epstein and Maxwell.
Photograph: courtesy of Virginia Roberts Giuffre

E nisto não há gradações pois sou incapaz de pensar que é ainda mais grave se forem pessoas que violam crianças institucionalizadas, totalmente indefesas, ou, pior ainda, se as violações forem perpetradas por gente ligada à igreja, ou se pior ainda é se for um pai a fazê-lo a um filho ou filha. É tudo igualmente mau de mais, tudo desnaturado, tudo demasiado insuportável. Não consigo sequer pensar no trauma que isso deve causar numa criança, na vergonha, no asco, no medo que ficam inscritos no seu corpo. E depois sabe-se que quando os crimes de abuso ocorrem, é sempre pedido às crianças que guardem segredo, e é pedido sob ameaça, por vezes velada ou sob chantagem. As crianças tantas vezes a sentirem-se cúmplices, talvez até culpadas.

Não consigo sequer pensar o que é crescer com uma mancha destas dentro de si. Compreendo que quem é vítima de abusos o esconda, tente esquecer, não queira que ninguém saiba. Expor o assunto deve ser quase como se a sua intimidade voltasse a ser devassada. Não consigo imaginar. Deve ser horrível.

Se há matéria em que as minhas entranhas se reviram é esta. Dou por mim a pensar que deveria conseguir sentir alguma compaixão pelas almas perdidas, perturbadas, que o praticam, que deveria tentar entender a sua história, se calhar também uma história de abandono e abusos. Mas não consigo, é mais forte que eu. Só penso que pessoas assim, abusadoras, violadoras, têm que estar enjauladas, longe de crianças, impedidas de voltarem a praticar os mesmos actos.

Li há dias, no Guardian, um excerto do livro póstumo de Virginia Roberts Giuffre, Nobody’s Girl: A Memoir of Surviving Abuse and Fighting for Justice, no qual ela relata como foi parar às mãos dos dois predadores sexuais, Epstein e Maxwell, qual deles o mais sórdido e depravado, qual deles o mais perverso e com vida mais estranha, mais sombria. 

Li e fiquei incomodada. Tudo acontecia com a naturalidade de quem se comporta como se tudo pudesse e tudo lhe fosse permitido. Usavam e abusavam, traficavam, cediam, emprestavam. Entre sorrisos, entre promessas, entre gentilezas. Eles dois, a dupla Epstein e Maxwell, o Príncipe André e os bilionários a quem ela se refere por números. Tinha 16, depois 17 anos. Não tinha seis ou sete. Já não teria a inocência da primeira infância. Tinha, isso sim, os sonhos de uma jovem e sonhadora adolescente. E nessa idade, por muito que já se tenha passado -- e Virginia já tinha sido abusada em criança -- ainda se acredita que uma vida melhor pode estar pela frente. Desde que obedeça.

Na sequência da publicação desse excerto e por tudo o que tem estado a vir a lume, o canalha real já abdicou dos títulos. Mas, não sei porquê, não é detido para interrogatório. E, dadas as provas e os testemunhos, porque não é julgado e condenado. Velhaco. Ele e a mulherzinha dele, ambos nas mãos de Epstein, ambos a receberem favores e milhões dele. A troco de quê? A Justiça britânica não deveria averiguar?

Virginia, entretanto, como vários dos envolvidos neste escândalo, também já cá não está. Mais um suicídio nesta teia. Para ela, a sua caminhada de denúncia acabou.

Mas para tantas vítimas desta rede de pedofilia que alimentava o vício ou a luxúria animalesca de tantos 'ricos e poderosos' o pesadelo ainda não acabou. Os chamados ficheiros Epstein continuam a não ser divulgados.

Mas se lá o escândalo atingiu contornos hollywoodescos, já o que se passa na casa de tantas crianças ou em instituições em Portugal e por todo o mundo é igualmente sinistro, atormentador. 

Partilho o vídeo em que a psicóloga Gabriela Salazar fala de uma menina de 11 anos, violada pelo pai, que não percebia de que é que era culpada para ter que sair de casa e afastar-se dos seus amigos. Tudo doloroso de mais.

Por isso, considero que talvez quanto mais se falar destes fenómenos horrendos mais algumas vítimas ganhem coragem para denunciar os algozes que as molestam.

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“Do Outro Lado.” A menina que era vítima mas achava que era culpada

A primeira paciente de Gabriela Salazar, ainda durante o estágio, foi uma criança de onze anos vítima de abusos sexuais. Este caso acabou por definir o rumo da carreira da psicóloga.


Desejo-vos uma feliz terça-feira

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