segunda-feira, março 18, 2024

Despediu-se da vida o Poeta.
Mas nós, que ainda estamos vivos, não nos despedimos da sua poesia.

 

O que é a poesia? Poder-se-ia redigir como se fosse prosa e continuar a ser poesia? Tem a ver com a forma como se lê? As pausas, a melodia da ligação entre as palavras? Ou não, é poesia mesmo quando espera, silenciosamente, que alguém a leia? Ou o que a distingue da prosa são as ideias destiladas, marcadas pelo silêncio e pela intemporalidade?

Não sei.

Que venha alguém defini-la. Eu não sei.

Soube da morte de Nuno Júdice e fiquei abalada. Não sabia que estava doente. Li que morreu de cancro, no hospital. Quem morre assim, creio eu, morre sempre da mesma maneira: a debilidade a tomar conta do corpo, o tempo a esvair-se. Estaria provavelmente no corredor que quase me apetecia apelidar de corredor da morte, aquele em que já não se trata da cura mas, tão-só, do bem estar, do bem-estar possível, do alívio... Provavelmente a família passou pelo mesmo que eu, e provavelmente toda a gente que acompanha doentes nestas circunstâncias, querendo transmitir alguma esperança ou optimismo mas não sabendo como, pois estamos formatados para não mentir, muito menos aos nossos pais ou àqueles que amamos. E ele provavelmente a ver que os familiares queriam encontrar palavras de ânimo e a saber que essas palavras já não faziam falta.

Quando morre uma pessoa que está nessas circunstâncias, aqueles que os amam pensam: 'descansou', 'já não sofre mais'.

Terá acontecido também com ele. Descansou. E o descanso de um Poeta é sempre inegavelmente merecido pois, ao longo da vida, um Poeta semeia, planta, apara, oferece ao mundo poemas que são flores que não morrem, que para sempre acompanharão os que ainda cá estão e todos os outros que vierem a seguir.

Numa sexta-feira, dia 22 de agosto de 2008, pelas 10:26 da manhã, Nuno Júdice escolheu a imagem abaixo e publicou o poema "Domingo no campo". Escolho-o ao acaso entre tantos mas deixo o caminho para muitos outros: A a Z

E leio devagar, devagar, devagar.


Aos domingos, quando os sinos tocam

de manhã, o que neles se toca é a manhã,

e todas as manhãs que nessa manhã

se juntam, com os dias da infância que

nunca mais acabavam, as casas da aldeia

de portas abertas para quem passava,

as ruas de terra batida onde as carroças

traziam as coisas do campo, os cães que

corriam atrás delas, uma crença no sol

que parecia ter expulso todas as nuvens

do céu, e a eternidade desses domingos

que ficaram na memória, com o ressoar

dos sinos pelos campos para que todos

soubessem que era domingo, e não havia

domingo sem os sinos tocarem a lembrar,

a cada badalada, que os domingos não

são eternos, e que é preciso viver cada

domingo como se fosse o primeiro, para

que o toque dos sinos não dobre por

quem não sabe que é domingo.

posted by Nuno Júdice @ 10:36

2 comentários:

Moraislex disse...

Ficam os poemas.
Gosto especialmente do seu terceiro livro, que escreveu quando era jovem e que li quando eu era um pouco mais jovem, a Critica Doméstica dos Paralelepipedos.
O mundo parece despovoar-se a pouco e pouco.

Um Jeito Manso disse...

É verdade. Vão desaparecendo os silenciosos, os que têm real valor. Vão sobrando os palavrosos, os ruidosos, os fala-baratos.

E só se fala dos Poetas quando morrem. Um desgosto, isto.