sexta-feira, fevereiro 09, 2024

Eu numa fotografia, eu nas palavras que escrevo, eu nas minhas memórias -- em dia de descobertas e trabalhos pesados

 



Ainda não arrumei grande parte das coisas que vieram em sacos no sábado passado mas, ainda assim, resolvemos lá voltar hoje, só os dois, dar um avanço. 

A minha filha já tinha dito que podia ficar com um serviço de jantar, a minha nora, embora pouco convencida, disse que ainda conseguia acomodar mais um serviço de chá. E eu, não tendo nenhum deles referido um serviço de café que escolhi com a minha mãe quando ainda andava no liceu e de que sempre gostei muito, resolvi que esse viria para mim. O que elas escolheram é da Vista Alegre mas o que eu escolhi é de uma fábrica na Baviera, um desenho e umas cores completamente diferentes. Na altura a minha mãe hesitou pois era muito diferente das louças que ela tinha. Mas consegui convencê-la. Quando o desembalar a ver se fotografo para vos mostrar.

Acondicionar este tipo de louças, especialmente quando serviços completos, é muito trabalhoso e demorado e mais vale estarmos os dois sozinhos pois despachamos muito mais serviço. 

O serviço com que a minha filha ficou, disse-me a minha mãe não há muito tempo, nem chegou a ser estreado. É muito bonito. Já aqui falei nisso pois, quando ela me contou que na parte de baixo do móvel do lado esquerdo havia um segundo Vista Alegre ainda por estrear, fiquei com muita pena. Não sei para que o comprou tendo já um outro e isto para não falar de um outro, da Sociedade das Porcelanas de Coimbra (que viria a ser comprada e absorvida pela Vista Alegre) que, esse, era frequentemente usado. Não sei qual a ideia ao comprá-lo pois era óbvio que não chegaria a ser usado. Não sei se terá pensado que era um investimento. Provavelmente, mais que um investimento, um legado. Acontece que os destinatários já não têm onde guardar mais pratos, mais chávenas, mais copos. Neste caso, em particular, a minha filha diz que vai reformular a arrumação do aparador da sala de jantar para ver se lá o consegue encaixar. 

Mas o que acontece é que, porque me custa desfazer de coisas que a minha mãe adquiriu e conservou com tanto cuidado e agrado, vou trazer tudo. Fica tudo encaixotado num canto da cave e, com sorte, quando os meus netos tiverem a sua casa, virão cá abastecer-se.

No sábado tinha trazido toalhas e mais toalhas de mesa de renda e bordadas que agora tenho que ver onde as vou guardar. Hoje trouxe sacos de lençóis de linho, bordados, lençóis cheios de rendas, a dobra toda em renda, ora em bicos, ora em palas, ora a direito, ou a renda como entremeio, ou com renda e bordados, ou seja, também de toda a espécie e feitio -- predominantemente brancos com rendas e bordados também em branco. Mas vi uns de que me lembrei. A partir de certa altura, não sei bem, talvez tendo eu uns dezassete anos, a minha mãe e as minhas avós resolveram começar a fazer-me o enxoval. E lembro-me de ir a uma senhora que pregava rendas e fazia bordados para escolher para mim e de a minha mãe aproveitar a embalagem e mandar também fazer alguns para ela e lembro-me de ter sugerido que fizesse lençóis brancos com um bordado em cinza claro. Já não me lembrava do efeito mas, na realidade, estão muito bonitos. 

Pelo toque do tecido e pela forma como estão tão imaculadamente dobrados e arrumados tenho a certeza que não foram usados uma única vez. É que no roupeiro do corredor há pilhas de lençóis normais e eram esses que andavam a uso. Uns coloridos, outros com bordado inglês, outros com bordados simples. De alguns ainda me lembro de quando vivia lá. Imagine-se. Mas, portanto, todo aquele afã de fazer rendas, bordados, de escolher o melhor pano, de escolher a pessoa mais perfeccionista para fazer a obra de arte mais perfeita, foi para encher gavetas e prateleiras com coisas que não eram destinadas a ser usadas.

E agora tudo me vem parar a mim que também não uso nada disso. E fico cheia de pena, quase como se parte dos interesses ou ocupações da minha mãe tivessem sido inúteis. Na prática, como se tivesse desperdiçado parte da sua vida com coisas que, em termos muito pragmáticos, não servem para nada. Isso deixa-me triste.

Quando me encher de coragem para arrumá-los a ver se antes os fotografo. Ao menos vêem a luz do dia e podem ser observados por alguém em vez de estarem, em prateleiras no topo de roupeiros, votados ao ostracismo.

Ao tentar avaliar o volume de trabalho que ainda tenho pela frente, espreitei para dentro de alguns roupeiros. É de pesadelo. Coisas infindáveis. Mas num deles, ao tentar perceber o que me parecia um embrulho feito de tecido, fiz uma descoberta que me deixou emocionada. O vestido de casamento da minha mãe. Era estreita e magra como uma modelo. Não sei como cabia naquele vestido, lindo. Parecia-me que estava embrulhado num tecido fino, branco. Afinal, percebi despois, parece ser uma camisa de dormir, também até aos pés. Deve ter sido a que usou na noite de núpcias. Não sei agora onde vou guardá-lo. Se tivesse uma casa gigante com uma divisão a servir de museu, engomá-lo-ia, mandaria fazer uma caixa de vidro e pendurá-lo-ia lá dentro, como se vê nos museus, um lindo vestido em exposição.

E fiz uma outra descoberta extraordinária: numa gaveta da grande escrivaninha, que tem um conteúdo também infinito, por baixo de exames médicos, dentro de um envelope que estava dentro de um saco, ou seja, totalmente camuflado, estavam cartas escritas pelo meu pai quando estava na tropa e namorava a minha mãe. No endereço estava Menina tal e tal (o nome da minha mãe). Não sei se vou gostar de ler ou se vou sentir-me intrusa. Ao pegar no molho, vi que a última estava num envelope feito à mão, quase a desmanchar-se. E tinha escrito 'Por mão própria'. Uma letra muito bonita, mais bonita que a do meu pai (que é bonita). Se bem percebi, datada de mil novecentos e vintes e tais, é uma carta do meu avô materno dirigida à Menina tal e tal, minha avó. Tenho que rever a data pois, se vi bem, a minha avó pouco mais seria que uma criança. Aliás, a minha mãe, se não estou em erro, nasceu quando a minha avó ainda nem tinha dezassete anos. Tê-los-ia quase, estava por dias, mas ainda não feitos. Creio. 

E muitos envelopes com muitas fotografias. Dos meus pais em jovens, dos amigos, de primos, minhas em bebé e até adolescente, dos meus avós. Tantas, tantas fotografias. Eu deveria ter paciência e tempo livre para ler tudo o que tenho encontrado, para organizar as fotografias e todos os achados.

Mas não sei quando será que isso pode acontecer.

Comecei  também já a separar roupa da minha mãe. Fico com muita pena. Há tão pouco tempo ela ainda usava aquelas blusas, aqueles casacos, aquelas echarpes. A vida é efémera, ingrata. Sei que é da natureza, que não há volta. Tantas vezes eu dizia: 'Ninguém cá fica'. Ninguém. Mas quando nos toca a nós, de perto, as coisas ficam muito difíceis.

Ainda no início de Novembro, há três meses apenas, quando a minha mãe resolveu ir para uma residência assistida, estive com ela a escolher a roupa que ia levar. Só levou roupa de inverno porque, segundo dizia, na primavera ou no verão, ela mesma iria a casa para escolher roupa mais fresca. Estava cheia de planos. Foi carregada. Pensava que ia ainda viver muitos anos, queria levar muitas 'mudas', sempre gostou de se arranjar bem e, além disso, tinha lá amigas e isso ainda incentivava mais os seus brios. Ainda assim, nos primeiros dias em que lá esteve e antes de começar abruptamente a decair, ainda queria mais ténis, uns pares de calças de fato de treino para fazer ginástica, mais casaquinhos, mais não sei o quê. Voltei a casa várias vezes para ir procurar o que ela me ia pedindo. Tinha-se esquecido também de levar o casaco de tricot que estava a fazer, lá andei à procura disso e mais de um saco com novelos dessa lã. Em qualquer instante desses dias em que estava a fazer as malas ou a pedir que lhe levasse mais coisas eu adivinhei que, traiçoeiramente, um monstro silencioso estava a devorá-la por dentro. Dois meses e poucos dias depois estava morta. E eu pensar nisto deixa-me ainda perplexa e tristíssima. Quando escrevo ou digo ou penso que a minha mãe está morta ainda me parece mentira. Uma mentira muito cruel.

Sei que, num plano racional, pode dizer-se que a minha mãe sofreu durante pouco tempo e viveu bem, motivada e autónoma, até pouco antes de cair doente e, em pouco tempo, morrer. Mas, num plano emocional, é muito difícil.

Por exemplo, vendo aquelas suas roupas, as suas carteiras, as suas coisas, tudo ainda tão presente em mim, custa-me muito. E custa-me a acreditar. 

Estou a pôr quase tudo em montes em cima da cama dela. E tenho combinado com a senhora que a ajudava nos cuidados ao meu pai -- e que continuou a ir a casa dela no mínimo duas vezes por dia ver se estava tudo bem e que a ajudava nas compras --, que ela vai lá a casa (tem a chave), vê o que eu coloco em cima da cama, escolhe para ela o que quiser, vê se há coisas que se possam dar a quem precisar. E, se houver coisas que ninguém conhecido queira, ela mesma doa ou põe no lixo. Isso para mim é uma grande ajuda pois não tenho que ser eu a desfazer-me das coisas da minha mãe.

Ah, é verdade. Descobri também um rolo grande e grosso, atado com uma fitinha, e com um papel por fora a dizer Diplomas. Só vi o que era cá em casa. Muitos diplomas. Do meu pai, da minha mãe, meus. E, no meio, uma aguarela da autoria do meu tio, irmão da minha mãe. Lembrava-se daquela pintura. Era eu pequenina e achava que aquela pintura era insólita, inesperada, bonita. Depois deixei de vê-la. Agora descobri-a no meio dos diplomas. Estas descobertas enternecem-me.

Enfim. Irei dando notícias.

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Uma boa sexta-feira

Saúde. Força. Paz.

2 comentários:

ccastanho disse...

UJM
Espero que não lhe aconteça o que me aconteceu, ao mudar de casa. No meio de montes de coisas inúteis que se compram ao longo dos anos, e que depois vão para o lixo, no meio delas, inadvertidamente, foi uma mala de fotografias de família de varias gerações.

A minha mulher, ainda hoje não me perdoa o desleixo (na perspetiva dela, evidentemente) que tive em mandar fora juntamente com a carrada de coisas sem interesse nenhum .
Já corri mercados e feiras de velharias por todo o lado onde me é possível ir, e nada encontro de fotografias, encontro muitas, mas de outras famílias. Há móveis de família, há faianças, há roupa e muitas outras coisas que marcam o passado e nos trazem a saudade, mas nada marca mais do que uma fotografia de uma pessoa querida... Paciência.

Um Jeito Manso disse...

Olá Ccastanho

É sempre um dos meus pavores, que, no meio dos sacos com coisas para o lixo, vá algum saco com tesouros insubstituíveis...

Tomara que nunca me aconteça algo parecido com o que lhe aconteceu. Deve ser um desgosto e tanto... (Mas se fosse o meu marido a fazer uma dessas tenho a certeza que ele desvalorizaria, diria que são coisas sem as quais a gente vive bem...)

Um bom sábado!