Nos dias que atravesso a relação entre saúde física e saúde mental é recorrente. Dito desta maneira, se calhar fica a ideia, errada, de que a saúde mental não é física. Creio que é embora nem sempre rastreável através de exames médicos. Ou seja, não há controlo analítico ou RX ou ecografias para se perceber se uma pessoa está com uma depressão, sofre do Síndrome de Munchaüsen ou se, simplesmente, está a atravessa um período conturbado. E se nos é relativamente fácil saber que, se estamos com uma patologia evidente, por exemplo, se fracturamos um osso, devemos procurar ajuda médica, já para as questões mentais pode não ser óbvio. Ou porque achamos que faz parte da nossa maneira de ser, ou seja, não é coisa que deva ser tratada, ou é coisa passageira que saberemos ultrapassar, creio que não é às primeiras que as pessoas, em geral, percebem que devem procurar ajuda.
Ao longo da minha vida tenho-me cruzado com pessoas que, creio, teriam ganho em ter tido acompanhamento psicológico. Uma amiga, por exemplo, saiu directamente de um comportamento tímido e reservado para um totalmente desbragado, sem prestar atenção a nada do que lhe dissessem, entregando-se, sem defesas, a toda a espécie de situações que eram, à vista de todos, situações inviáveis, perigosas, ratoeiras nas quais se ia perder. E, no entanto, atirava-se de cabeça. E saiu de umas para outras, num percurso errático que lhe deixou marcas. Penso que ainda hoje continua a ser como era quando entrou neste registo: atirando-se de cabeça, adolescente até à medula, sem conseguir dosear as emoções, mostrando de forma inocente as suas perplexidades e frustrações. Não sei como é que um psicólogo poderia ter ajudado mas acredito que sim.
E tive um colaborador que era calado, calado, calado. Nunca se percebia o que lhe ia na cabeça, nunca dava opinião, nunca era capaz de fazer um ponto de situação razoável pois, temendo as dificuldades que sentiria até o trabalho estar concluído, dizia sempre que não sabia quando o acabaria. Tive vários problemas por causa dele. Ninguém conseguia relacionar-se de forma saudável com ele. Parecia ter sempre capital de queixa, notoriamente sentia-se injustiçado, mas nada fazia para contrariar essa situação. Por exemplo, numa reunião, pedia sugestões sobre um tema. As pessoas falavam, opinavam, sugeriam. Ele nada. Quando eu lhe perguntava qual a opinião, fazia um esgar de contrariedade, quase sarcástico, dizia que não queria dizer nada porque os outros antes já tinham dito tudo. Uma vez, sem ninguém perceber porquê, do nada, deu-lhe um ataque de fúria, levantou-se, pegou na cadeira em peso e bateu com ela no chão até a despedaçar. Depois virou costas e foi-se embora. À sua volta, estavam todos estarrecidos. Não vi. Contaram-me. Na verdade, acho que ficaram em pânico pois ele passou do habitual estado de quase zombie a monstro desaustinado. No dia seguinte, chamei-o e perguntei-lhe o que tinha sucedido. Com ar espantado, certamente fingidamente espantado, disse-me que se tinha passado porque a cadeira não prestava, que estava sempre a desencaixar-se mas que tinha vindo mais cedo e a tinha montado, que já estava boa. Penso que era um caso em que teria beneficiado de acompanhamento pois alguma coisa naquela cabeça não estava bem encaixada.
E já nem falo numa outra que, sob a capa da santinha, da boazinha que levava bolinhos feitos por ela para distribuir pelos colegas, que trabalhava horas a fio, até de madrugada e que surpreendia todos pois quando os mais madrugadores chegavam já lá a encontravam, frequentemente fazendo trabalho que nem lhe competia, numa de ser amiga dos que precisavam de ajuda, e que veio a revelar ser dona de uma mente perversa, causando sérias perturbações familiares, sérios danos profissionais, chegando até a causar medo a quem com ela lidava mais de perto. Face à gravidade dos casos em que a soube envolvida, mais diria que seria caso até de internamento.
E, do que tenho visto e sabido, não apenas beneficiam de acompanhamento as pessoas que padecem de algum problema, como os acima referidos, como aqueles que, tendo que lidar com essas pessoas, chegam a um ponto de exaustão ou infelicidade ou permanente dúvida sobre como lidar com a situação que, precisam mesmo de alguém sabedor que, de fora, ajude a encaixar as peças soltas do puzzle e forneça pistas sobre como melhor levar a vida adiante.
O Observador, que não tenho por hábito acompanhar enquanto jornal, tem esta louvável iniciativa de ter um 'canal' em que se debruça sobre os labirintos da mente, quer convidando pessoas a falar sobre os seus problemas e sobre como conseguiram procurar alívio com acompanhamento profissional quer convidando justamente diversos profissionais da área da saúde mental que aqui falam sobre casos concretos. "Do Outro Lado" é a nova rubrica do projeto Mental, do Observador.
Escolho, para já, apenas dois dos vídeos, o primeiro porque me impressionou bastante, até porque desconhecia que havia um síndrome identificado para este tipo de patologia, e o segundo porque me fez lembrar o caso de um colega dos meus filhos que me preocupou bastante na altura e o do filho de um colega meu, um rapaz que, de tão viciado, não apenas deixou de estudar como quase deixou de viver, tornando-se até agressivo para os pais.
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