quinta-feira, setembro 23, 2021

Na maior impunidade

 


Hoje é que é mesmo zero. De manhã até ao fim do dia em reunião. Sobra pouco mais do que uma empty head -- e digo em inglês para ver se soa um pouco melhor. 

Tínhamos combinado que eu não deveria estar despachada antes das seis mas que, logo que ele chegasse, poderíamos sair. Mas qual quê. A ver o tempo a passar e a coisa a dar para mais. Uma impaciência. Avisei que teria um limite. Mas como ele também não chegava, pensei que, na volta, o tema se extinguiria a tempo.

Mas ele chegou perto das sete e ainda eu estava no meio. 

Então comecei a acelerar, já deserta de que tudo se resolvesse a tempo para não ter que sair à papo-seco. Foi à tangente. Melhor: mais do que à tangente. Quiçá uma secante. 

Saímos às sete e picos. Voltámos a uma secção a que não íamos faz tempo.

Sorry por isto estar encriptado. Não é que seja supersticiosa mas não vou contar para não atrair.

Ultimamente, tudo o que damos como certo sai ao lado. Mesmo o que estava dado como garantido, furou. Por isso, agora bato a bola baixo.

Já sabem que, quando estou dentro delas, quando elas são de monta, eu fico de bico calado. Não gosto de falar da história quando não sei como é que ela acaba. Mas, logo que eu saiba como vai ser, eu conto. Conto e tenho muito que contar. Que contar e que dar pontapé e virar a mesa. Ai não que não.

Mas, então, lá fomos à secção a que há muito não íamos. 

Pelo caminho, para cá e para lá, fui fazendo os meus telefonemas. Pelo meio, algumas dúvidas. Receio de má decisão. Consultamos site e cada um diz a sua. Conhecimento feito na base do google é conhecimento da treta. Mas é o que há e vamos tentando fazer a bissectriz. E fiar-nos no que parece mais reliable. Hoje está a dar-me para os anglicanismos. 

E, sem jantar feito, encomendámos piza. Metade de presunto, metade de salmão. Passámos por lá a apanhar. No cu de judas. Fomos pela mão do gps: na rotunda sai na segunda saída, a quatrocentos metros vira à direita, na rotunda sai pela primeira, logo à esquerda, a duzentos metros vira novamente à esquerda. Não faço ideia de por onde andámos. Era de noite, íamos na conversa e, em piloto automático, obedecendo. Lá demos com a pizaria. Na volta, cheirava bem no carro que só visto. E nós cheios de fome.

Depois do jantar havia um mail. A Lurdes escreveu. Era ela mesmo que, no outro dia, aqui comentou. Mail bom, daquelas cartas longas que gosto de receber. Quando as recebia na caixa de correio avaliava pela grossura do envelope se tinha muitas folhas. E, quando abria, mais contente ficava se viessem escritas na frente e no verso. A Lurdes é parecida comigo, acho eu. Talvez leve as coisas mais a sério que eu. Mas parecida não significa igual. Tive vontade de responder de seguida. Respondi.

Depois era para ter vindo logo para o blog mas, sem aviso prévio, adormeci. Agora acordei. Doeu-me um pouco o alto da cabeça. Ao passar a mão por ela, senti um alto, dorido. Presumo que esteja até um pouco ferido. Lembrei-me que, de manhã, ao ir apanhar uma coisa debaixo da romãzeira, bati com toda a força com a cabeça num ramo tombado pelo peso das romãs. Ainda não estão outonais, graúdas e rubras. Ainda estão em crescimento e verdes. A ver se desta vez não são comidas, não sei se pelos pássaros se pelos ratos. No outro dia, disse à minha mãe que se calhar tinham sido os ratos que trepavam aos ramos e comiam os bagos das romãs. A minha mãe olhou para mim como se eu não fosse boa da cabeça, como se fosse impossível que os ratos andassem sobre aqueles ramos finos e vergados. Não sei quem foi. O que sei é que elas apareciam forjadamente boas mas ocas, devoradas.

Sei também que fomos à horta para apanharmos ameixas e já não conseguimos trazer uma única. As duas que sobravam caíram ao chão, desfeitas, mal o ramo estremeceu. É uma dificuldade. Primeiro estão pouco doces, depois, mal começam a adoçar-se, os pássaros começam a comê-las e, mal estão doces de verdade, caem, amolecidas e tocadas, impróprias. O chão está pejado delas, desfeitas em sumo espesso. Há um cheiro doce no ar. É como, in heaven, o chão pejado de figos, um odor quente e húmido no ar. 

Penso muitas vezes que um dia que tenha tempo hei-de fazer compotas. Mas as compotas são feitas com açúcar e o açúcar não faz bem nenhum. Por isso, vou fazer coisas que depois ninguém quer comer porque engordam e porque fazem mal? Acho que não. Haverá compotas sem açúcar (e sem adoçantes)? Tenho que investigar.

Ah, é verdade. Mais uma novidade. Finalmente estou a ver se me adapto aos óculos. Não sei se já contei. Desisti dos progressivos. Perguntei à técnica porque é que não me adaptava. Disse-me que o feitio da lente não era recomendado para os progressivos. No exame fiquei também a saber que tenho um pouco de astigmatismo. Não sei como foi que isto apareceu. Deve ser mesmo da pdi. Sempre tive foi um bocado de miopia. Não era muita mas habituei-me a usar óculos para conduzir. No cinema também me sentia mais confortável com eles. Ultimamente juntou-se a vista cansada. Pensava que era só isso, coisa de velha. Afinal, diz-me a jovem oftalmologista: tem aqui um pouco de astigmatismo. Tão espantada fiquei que não perguntei se uma coisa tinha substituída a outra ou se agora se juntaram as três à esquina a tocar a concertina: miopia, vista cansada e astigmatismo. Whatever.

Optei por óculos por ver ao perto, simples. Mas, com eles, só vejo alguma coisa se for mesmo ao perto. Basta que a coisa esteja um pouco afastada para já ser uma baralhada. Mas como são de lente baixa, posso ensaiar ver por cima, coisa mesmo à anciã. Mas a isso ainda não cheguei até porque não os coloco na ponta do nariz. O que faço é, se tenho que ver mais ao longe, tiro-os. Resumindo: quase nunca os uso. Mas hoje a reunião foi daquelas em que estava a ser partilhada uma apresentação cheia de número miúdo Falava-se de milhões mas, para disfarçar, os numerozinhos eram bons para coca-bichinhos. Tive que os usar. E, caramba, fiquei surpreendida com a cara de toda a gente. Caras nítidas que só visto.

A vista é cheia de surpresas. A gente pensa que sabe e que vê e, afinal, basta uma pequena lâmina de vidro para a gente perceber que andou a ver tudo diferente do que é. E, se calhar, se um dia experimentar outra coisa qualquer, vou ver tudo virado do avesso. Nunca se sabe ao que se anda, essa é que é essa.

E, tirando isso, nada. Aliás, confirma-se o que avisei no início: hoje isto é mesmo zero. Escrevo por escrever, na maior impunidade.

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As imagens são recriações de pinturas em cenas protagonizadas por celebridades e a autoria da proeza é do instagramer Kyès

Sheku Kanneh-Mason, Isata Kanneh-Mason interpretam In the Bleak Midwinter de Holst

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Quando fui à procura de música para estar aqui a ouvir, o meu amigo algoritmo apareceu-me com coisa alusiva a Clarice Lispector. Por enquanto não fala, ele, o algoritmo, só vem de mansinho oferecer-me vídeos. Lá chegará o dia em que uma caixa de bombons belgas se materializa aqui nas minhas mãos enquanto a sugestão me é sussurrada aos ouvidos. Acho que já faltou mais.

Enquanto não, vai agindo assim, também na maior impunidade. Desta vez, todo prosa, trouxe-me este aqui abaixo. Partilho convosco. Quando receber bombons belgas também vos farei chegar alguns.

"Não se lê Clarice IMPUNEMENTE"


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Desejo-vos uma boa quinta.
Bora lá curti-la a valer, ok?

1 comentário:

atalhos disse...

A minha fruteira ficou radiante com este atalho. E a romãzeira está de uma gravidez radiosa. Para primípara foi valente: trinta e cinco romãs, sendo que as que ainda estão na árvore, agora que choveu, a vestem de uma beleza arrasadora. Ainda não abri nenhuma, mas pelo peso parecem bem criadas. Com o calor que tem feito aqui é tudo mais acelerado. Até eu.
Uma boa quinta (bem curtida) para si também, Um Jeito Manso. E pode servir-se à vontade!