terça-feira, abril 13, 2021

Trabalhos, penteados e uma entrevista saborosa

 


Hoje comecei o dia, recebendo telefonemas atrás de telefonemas estando eu ainda na cama, a acordar. Não gosto. Gosto de acordar na minha hora, quando o meu corpo se sentir confortável com o despertar. Se acordo quando o meu marido se levanta, peço para abrir a janela. Abrir a janela é como quem diz, pô-la basculante. O estore em si fica apenas chegado até abaixo mas com os buraquinhos todos abertos para entrar luz e ar. O meu marido protesta com os meus pedidos, diz que não está tempo para abrir a janela, que entra ar frio. Eu gosto. O ar frio da manhã com canto de pássaros à mistura é muito bom. Daqui por algum tempo, poremos o sistema de rega a funcionar. E, portanto, acordarei com o frescor da aurora, o som da rega, o canto dos pássaros, o cheiro das flores do canteiro sob a janela. Geralmente volto a adormecer, tranquila, encantada, e acordo com o despertador.

Ao fim de semana, não havendo compromissos, acordo e fico um bom bocado no quentinho, no bem bom, curtindo o prazer de estar entre lençóis em pleno dia. 

A antítese de tudo isto é estar a dormir e acordar com o telefone. Uma neura. Pior ainda se, atendendo, estiver do lado de lá alguém cheio de problemas, alertas, ralações e que faz questão de os passar inteirinhos para mim. Detesto. A minha cabeça gosta de ter um tempo de setup generoso. 

Outra coisa que também me estraga o dia é ter que acordar à pressa, com aceleradas abluções e petit dejeuner sem um mínimo de vagar e qualidade e, sem tempo para me ver ao espelho, ajeitar cabelo ou passar um brilhozinho nos lábios, entrar em reunião e, de súbito, ter que me sintonizar num outro comprimento de onda. Não gosto. Nada.

E esta segunda-feira, dia já de si desagradável, acordei assim. Telefonemas, telefonemas. Depois, tantas as emergências, tive que marcar reunião e, de supetão, entrar nela. Estava a entrar na dita e a pensar: isto não vai correr bem. Penso que só os distraídos é que ainda não perceberam que não deveriam pôr-se a jeito, ainda por cima a uma segunda-feira de manhã. Não correu bem, claro. Dei por mim a falar devagarinho, baixinho, nitidamente a conter-me para não me portar mal. Depois, na seguinte, a que estava planeada, a que era para ter corrido rapidamente, atrasou-se. Um incómodo. 

Fomos caminhar à hora a que deveríamos estar a almoçar. Podia não ter ido e limitar-me a almoçar. Mas preferi andar. Como a seguir tinha outra para a qual tinha que ler um documento antes, almocei uma banana. Horas nisto. 

E assim fui até que terminei por volta das sete e tal, hora a que tive que ligar a um colega, depois à minha filha, depois à minha mãe. Felizmente, o jantar foi um resto que estava parqueado no frigorífico, senão daria para belas horas. A seguir estive à conversa com o meu filho. E mal me instalei, novo mail a pedir-me uma opinião antes da reunião de amanhã. Pensei: gaita, lá terá que ser, vou mas é despachar já senão amanhã, em vez de acordar com os passarinhos, acordo com um pedido de opinião. 

E é isto. Ainda me lembro de um dos meninos me ter perguntado: o que é que tu fazes? E eu ter ficado sem saber bem o que dizer. Como se explica a uma criança a vida que levo? Não curo doentes, não construo ou projecto casas ou pontes, não defendo prisioneiros, não sou professora, não sou cabeleireira ou polícia, não sou jardineira. Faço o quê? Só isto que aqui vos conto e que, espremido, não sei se dá algum sumo.

E, assim, neste comprimento de onda, os dias vão passando. À hora do almoço, o tempo estava razoável, havia raios de sol, a temperatura estava amena. Quando, ao fim da tarde, saí para o jardim para apanhar ar enquanto falava com a minha filha, estranhei: estava frio, o céu escuro, fechado, o chão molhado, alguma coisa tinha chovido. Cheguei a casa, tive que me agasalhar, parece que a própria casa tinha esfriado. Não percebi.

Usei hoje o poncho de lãzinha fininha que a minha mãe me fez e que, por causa do confinamento, só ontem recebi. Tem aquela cor de que tanto gosto, é solto e macio, e é quentinho. 

E agora aqui estou. Do que me apercebo, continua o fuzuê em torno de Sócrates e de Ivo Rosa, com as vizinhas comentadeiras a comentarem-se umas às outras. A coisa já deve ir na quinquagésima derivada, com o gato e o cão a desfiarem palpites sobre a relevância das provas indirectas e sobre se há razão ponderosa para que o grande Perna, afinal, não seja tratado como o DDT mas apenas como um pindérico portador de um canivete suiço. E, aproveitando o descaso, o coroninha dos pink totós, agora todo feito prosa, a dar-se ares de primo da rainha, todo posh, vai pulando toda a cerca que pode, deslizando do verdinho para o amareladinho, já com tonzinho laranja, a namorar o encarnadinho. Blink, blink.


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As fotografias mostram uns penteados que me deixam roída de inveja. E não é da branca, é mesmo da tinhosa. Gostava mesmo que o Alexis Ferrer me fizesse um penteado assim, com pinturas a preceito.

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E, já agora, deixem que partilhe uma entrevista gostosa. Gente inteligente e desprendida é outra coisa.

Fernanda Montenegro - Conversa com Bial 

No ano em que comemorou seus 90 anos, a atriz lançou seu livro de memórias, "Prólogo, Ato, Epílogo". A obra foi o assunto do Conversa com Bial de 03/10/2019, que celebrou a grande dama do cinema e da dramaturgia do Brasil. Marta Góes, a biógrafa, também estava na conversa e é definida por Fernanda como "uma excelente parteira". O livro é fruto de 18 entrevistas transcritas e editadas por Marta e a conversa foi uma aula de vida e de atuação.


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Desejo-vos um dia bom

1 comentário:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Ó riqueza depois de um fds radioso leva com uma segunda-feira com esse despertar, não há condições...
Quanto ao fuzuê é caso para percebermos o quão aquém de uma mentalidade civilizada (o que quer que isso queira dizer).

Um rico dia. Espero que hoje não tenha acordada a telefonemas.