terça-feira, abril 06, 2021

As casas dos outros

 



Sou uma pessoa de casa. É onde me sinto melhor: na minha casa. Quando estou fora, de férias, ao fim de alguns dias já me apetece voltar para casa. E, se estou em casa alheia, chego sempre ao ponto em que começa a bater a vontade de sair de lá, de regressar à minha. 

E gosto de ver casas bonitas. Dantes comprava revistas de decoração. Com que prazer as via. E guardo-as todas, acho que encerram tantas intimidades e tantas boas ideias.

Tenho conhecido casas muito bonitas. Uma das mais bonitas situa-se em Sintra. Uma casa de pedra em que um dos lados está encostado à serra. Os muros estão cobertos de hera. Tem um pátio interior com grandes vasos de pedra. Tem escadarias exteriores com varandas de pedra e te escadas interiores, E tem salas que comunicam com salas que comunicam com salas. Há salas com lareiras gigantes e com grandes mesas de madeira em torno da qual as pessoas se sentam a conversar. E tem janelas altas com bancos de pedra dentro de casa, de cada um dos lados. É tão bonita e tão bem decorada que não há uma coisa que eu mudasse. 

Uma outra casa de que gosto muito é a casa de uns amigos. Ela foi-se há pouco tempo, o que muito me abalou. A casa era a casa dela, a cara dela. Há lá conjuntos de peças de que ela se tinha tornado quase coleccionadora. Peças simples ou bonitas ou ímpares. Crucifixos, por exemplo. Muitos. Pintei um quadrinho com um, que lhe ofereci. E, no alpendre, havia vasos e peças de terracota e flores e trepadeiras. Uma casa com surpresas e muito para ver, coisas de que ela falava com gosto e de que fazia gosto em mostrar, referindo onde as tinha arranjado, por vezes envoltas em histórias. Gosto de casas que são assim, em que se vê que há ali muito da alma de quem lá vive. Não sei como estará a casa agora, sem a presença e a voz e o riso dela.

Conheci também uma casa que era a casa dele e não dela. Era uma casa masculina mas a casa de um homem que é um bon vivant. A mulher, segundo ele, gosta de estar com amigas, de estar na esplanada a conversar, não em casa. E, por deus, o que ela conversa. Uma vez vi-me entre ela, a que acima referi e uma outra que falava pelas duas juntas. Ao princípio eu estava divertida a assistir aquela desgarrada, por vezes espantada. Algum tempo depois estava exausta. Falavam tanto, tanto, tanto, tanto que eu não conseguia energia sequer para abrir e boca e dizer alguma coisa. Mas ele, pelo contrário, era homem de receber, de conversar em torno de um bom vinho. A casa era a casa dele, com zonas de sombra, com subtilezas, ironias e recantos.

Havia também a casa de uma amiga meio doida. Completamente doida, dizia o meu marido. Já aqui falei dela algumas vezes. Ilustre psiquiatra. Toda ela era uma figura. Bonita, elegante, uma voz e tanto, inteligente. Mas, de facto, tenho que reconhecer, com uma pancada das valentes. A casa era como se fosse a casa da bisavó. Uma casa antiga que não tinham restaurado nem modernizado e com mobílias que herdara da família, móveis enormes e sombrios, tapeçarias tristes, espaço vazio e melancólico. Nada naquela casa era acolhedor. Parecia que se tinham instalado numa casa abandonada. Uma vez estava lá a mãe, a tocar piano. Tocava lindamente. Mulher lindíssima mas completamente alienada. O marido tinha uma amante da idade das filhas. Toda a gente na família o sabia, incluindo ela. Sempre que lá chegávamos, esses nossos amigos estavam zangados um com o outro. Tudo o que ele queria ela achava estranho. Era incapaz de um gesto de ternura ou compreensão porque o achava anormal e fazia questão de lho dizer. Ele não se queixava dela; apenas, na brincadeira, dizia que ela não tinha jeito para cozinhar. Um dia, quando lá chegámos, pergunta-me ela: 'Olha lá, disseste que cozer peixe não tinha nada que saber, que era pôr as batatas e o peixe em água. Pois olha, tenho a informar que ficou incomestível, espinhas e tripas tudo misturado'. E ele: 'Porque é que não lhe perguntas se não era preciso tirar as tripas...?'. E ela: 'É?'. Eu, atónita: 'Bolas. Que é que fizeste? Que peixe é que era?'. Ela: 'Fanecas. Comprei-as ali no mercado, pu-las no tacho com as batatas'. 'Fanecas cozidas? Inteiras? Com a tripa?'. Ele, rindo: 'Eu não te disse?'. E eu: 'Caraças. Não se cozem fanecas. Fritam-se. É peixe que se desfaz. Quanto muito, punhas por cima, no fim. Mas, bolas, tem que se amanhar...'. A casa era como ela, uma coisa entre o desesperado, o incompreendido, o ansioso. Uma vez estava toda enervada, as coisas estavam a correr muito mal entre eles. Contava-me coisas, perguntava-me coisas, queria concluir que ele é que tinha toda a 'culpa'. Mas coisas do género: 'Olha lá. Ele quer que eu me ponha de costas. Achas normal?. Eu desatava-me a rir. Nesse dia estávamos no quarto dela, as duas sentadas na cama, ela a arrumar uma gaveta. Quando me fez aquela pergunta, lembro-me de me ter atirado para trás, a rir. Nisto apareceram eles e viram-me perdida de riso e ela espantada com o meu riso. 'O que foi?', perguntaram. E eu ainda mais perdida de riso, sem querer contar o que ela me tinha perguntado. 

Enfim. Cada casa reflecte quem lá vive dentro, O pior é quando não, quando a gente vê a casa e não reconhece nela a pessoa que julgamos conhecer. Aí ficamos sem saber qual reflecte melhor o que a pessoa é de verdade, se a casa se a imagem que formámos do nosso provável desconhecido.

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Permitam que partilhe duas casas a que achei uma graça não apenas pela decoração mas pela arquitectura e enquadramento paisagístico. Gostei das casas mas também da forma como os donos falam delas.

Adriana Calcanhotto abre as portas da sua para mostrar seus livros e gatos 


Marisa Orth e Gringo Cardia mostram casa com vista para cartão-postal do RJ


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As pinturas são de Manuel Amado e acompanham David Gilmour a interpretar Dominoes

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Um dia bom

1 comentário:

Estevão disse...

A casa da Adriana com a água do banheiro a correr parece um anexo da casa da cascata.
Pena que a mata a desconcentre ..
https://youtu.be/JW040r0LiTc