terça-feira, janeiro 26, 2021

Bordar palavras, escutar vidas, esperar o passar do tempo

 



Os mails de trabalho continuam a chegar. O teletrabalho transtorna-nos, dilui fronteiras entre o tempo do trabalho e o nosso tempo. Esforço-me por me alhear mas, de vez em quando cedo e há sempre qualquer coisa que me faz ter vontade de intervir. Mas esforço-me, esforço-me. 

Há pouco, estava quase a dormir quando chegou uma mensagem da minha mãe a dizer que estava a dar o programa do Cérebro na RTP 1. Estive a ver. Muito interessante. 

Mas, a esta hora, se me ponho apenas a ver televisão, adormeço. Então, fui lendo algumas notícias. Já antes, por telefone, tinham estado a contar-me coisas. A aflição que se vive em muitas casas é indescritível e o que se passa nos hospitais é ainda pior. Durante o dia, o meu marido falou com alguns colegas que estão infectados. Alguns estão como se nada fosse. Outros estão mal. Falam com cansaço, a voz alterada, tossem, um diz que está sempre agoniado, 'sempre com vómitos', dizia. Alguns já têm todo o agregado familiar infectado. 

Li que a ministra disse que pondera enviar doentes para o estrangeiro. Isso faz-me sentir um tremendo desamparo. Nem imagino o que seja estar mal, sem conseguir respirar, sem saber se haverá vida depois dessa experiência de fim da linha e, ainda por cima, rodeado de pessoas que falam outra língua, com as quais não há sequer o vínculo emocional da nacionalidade. Essa perspectiva assusta-me muito. 

Hoje soube de uma pessoa que tinha feito o teste e que recebeu o resultado por mail. Não se lembrou de ver o mail durante o fim de semana. Pensava que o informariam por outra via, talvez por telefone. Foi trabalhar. Só quando abriu a caixa de correio é que viu o mail. Claro que foi logo para casa mas, entretanto, já tinha estado com várias pessoas que foram logo mandadas para casa. Há serviços e funções que começam a faltar, algumas críticas ao bom funcionamento do país. Até aqui ainda não nos apercebemos de como isto pode ser problemático pois, na rectaguarda, nos bastidores do país, muita gente invisível continuar a dar o corpo ao manifesto, enfrentando diariamente todos os riscos. Até que o vírus começa a atingir equipas inteiras.

Vai demorar a voltar à normalidade nos hospitais e, até lá, muitas pessoas vão sofrer horrores, algumas dias inteiros fechadas em ambulâncias, a oxigénio, à porta do hospital, sem camas que as recebam. Sentindo medo, desconforto, mal estar, solidão, medo, medo, medo.

Ainda há muita gente que continua a não usar máscara ou a não usá-la sempre e convenientemente. Estar em espaço fechados, sem ventilação natural, pode ser um risco, em especial se durante várias horas e muito pior ainda se sem máscara ou se com uma máscara caseira de pano. Mas não sei se é só isso que explica esta explosão de contágios.

Provavelmente até ao fim de Fevereiro, tomara que não até Março, os números podem ser assustadores. Mas não são os números que assustam: são as vidas que se perdem e o sofrimento de tantas famílias. Li que a esperança de vida vai encurtar. E estremeci. A esperança de vida é um conceito estatístico mas é mais do que isso, é o sinal de esperança para quem vive. Peço à minha mãe que se mantenha recolhida, que não deixe entrar ninguém em casa. Mas é um pedido doloroso. Estes deveriam ser os tempos em que a minha mãe deveria poder conviver, passear, estar com a família e com as suas amigas. Isso é que deveria poder acontecer e não estar fechada em casa, não ficar à espera que o tempo passe -- porque se para todas as pessoas isso é terrível, para quem tem a idade que ela tem ainda mais terrível é.

Que estranho e medonho anda esta mundo. 

Mas não quero falar mais disso.

Ligou-me um colega. Penso que terá razões para estar bem furioso comigo. Muitas. Sei das minhas razões mas admito que para ele a coisa não tenha sido fácil de digerir. No entanto, quem o ouvisse a falar comigo di-lo-ia um grande amigo. Afável, atencioso, todo ele prosa, contando-me os seus planos, todo sorrisos na voz. Eu ouvia-o e alinhava na boa onda da conversa sem perceber como tal era possível. A natureza humana é cheia de disfarces, de jogos de espelhos, de rasteiras, de buracos negros. 

Pouco depois, um outro telefonou, acinte na voz, ressentimento, e penso que terá também razões para isso. Vinha queixar-se de um outro. Muitas queixas. Relatou uma conversa com o outro para me demonstrar como o outro é imprestável. O tom de voz credível, a conversa credível. Mal o telefonema acabou, liguei ao outro, furiosa eu, confrontando-o com o que o outro me tinha dito. Ficou passado, que não se tinha passado nada daquilo, que tinha sido o contrário, que era inacreditável. Furioso da vida. Fui beber água e pus-me a olhar pela janela a pensar que deveria ir apanhar uma laranja. Logo a seguir outro telefonema, mais problemas. Nem vale a pena tentar perceber, pensar nisto. É assim, sempre foi, sempre será. Mais vale aceitar e simplesmente saber conduzir a vida por entre obstáculos, rasteiras e tormentas.

À noite, aqui neste meu sofá tão confortável, entre almofadas macias, ao tentar fugir dos mails de trabalho e, ao mesmo tempo, a tentar manter-me acordada, depois da ronda pelos outros blogs, aportei ao youtube. Faz-me impressão pensar que o que vejo é o que ele escolhe para me mostrar. Por vezes tento lembrar-me de algumas coisas que eu antes via e que nunca mais me apareceram, mas não me lembro dos nomes, não tenho como encontrar. Perco-me das coisas como me vou perdendo de algumas pessoas. A vida cada vez condicionada por teias intangíveis, invisíveis.

Estive a ver um vídeo sobre como dispor coisas sobre os móveis para que pareçam mais arrumadas, sobre como estufar bancos, sobre como criar ambientes harmoniosos. Vi outro com uma bailarina nos seus treinos diários. E um outro com uma senhora que já tinha visto antes, num outro vídeo. Tem um rosto curioso, não se esquece. Para quem, como eu, sempre teve uma vida sem história, ouvir uma pessoa falar da sua infância sem afecto e da solidão que sentia e da forma como mais tarde tentou suprir essa solidão tornando-se ela própria desatenta em relação ao afecto pelos filhos, uma história de vida assim desperta-me atenção, dá-me ainda mais vontade de compreender melhor as pessoas, não as julgar sem conhecer bem o que justifica as suas atitudes. Partilho convosco.

Love, Mummy 

Jenny Jackson


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Folhas bordadas por Hillary Waters Fayle ao som de Morning has broken segundo David Gilmour

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A todos aí desse lado um dia bom.
Saúde. Força.

2 comentários:

Unknown disse...

bom dia, se puder ouça a ministra da saúde ontem na rtp1, penso que ficará esclarecida quanto ao mandar doentes para outros países, quanto ao resto é uma mulher guerreira que ali está, a dar o sue melhor e não merece o nível de perguntas estúpidas nem comparações avulsas que lhe fazem.

Um Jeito Manso disse...

Olá,

Vi um excerto. É uma guerreira, uma mulher de bem, uma mulher de fibra. Há quanto tempo não deve ter uma noite bem dormida, um dia sossegado em família? Deve andar exausta, preocupada, sem ter tempo para ler tudo o que lhe mandam, para atender todos os que querem falar com ela, sem conseguir ir a todo o lado em que quereria ir. E ainda arranja energia para dar entrevista... Tenho muita admiração por ela, muita mesmo.

Saúde.