quinta-feira, outubro 22, 2020

Não confio em médicos que nunca examinam
[Post com mezinhas dentro: para a secura vaginal, para a impotência sexual, para a ejaculação precoce, para as pedras nos rins, para as dúvidas existencialistas e para muitas outras maleitas]


O meu dia foi de seguida, quase sem pausa para almoço. Mas tudo a andar bem, todos in the mood. Não for love mas, ainda assim, na boa. Dia sem stress e sem crise é dia bom, dia em que parece que a paz pousa em mim como uma daquelas abençoadas rolas brancas que, por aqui, pousa nas árvores. 

Ao fim da tarde, quando nos reencontrámos em casa, fomos caminhar. Conversamos, observamos as casas e os jardins enquanto andamos. Depois, de novo em casa, fomos prender ramos e hastes da trepadeira, guiando-os para que floresçam como um arco. 

Os telefonemas do fim do dia também todos tranquilos. Sem chover, os pássaros contentes, as flores a desamarrotar as grandes pétalas, tudo na serenidade.
[Não quero saber dos chiliques e das petulâncias das meninas bloquistas. Aquilo não faz o meu género. Tudo se há-de resolver. Não perco tempo com fricotes.]

Já tarde, a noite já avançada, recolhi ao sofá e adormeci. Uns minutos apenas mas os suficientes, os que me faltavam. Fico logo mais fresca, com vontade de me surpreender. 

Circulo, então, por onde posso. Em dias assim não pego em livros, parece-me que se me fecha a disponibilidade para coisa que se adentre em mim. Ponho-me, então, a navegar aos deus-dará.

E, então, deambulando na vagabundeza, fui parar a mais um antológico trecho de Eberth Vêncio. 

E, ao lê-lo, recordei a vez em que constipada, congestionada e engripada resolvi ir ao médico. Não havia corona-dos-totós pelo que foi sem medos que lá fui, apenas por não saber o que tomar. Era menina recém-casada, andava a estudar e a dar aulas, não queria piorar, não queria faltar aos meus compromissos. Morava num lugar totalmente desconhecido, sem quaisquer conhecidos por perto. O meu marido disse que, ao fim da rua, tinha visto uma tabuleta, médico de clínica geral. Lá fui. Era um homem já entrado. Perguntou de que padecimento me queixava. Não eram precisas grandes explicações: a voz, o semblante, os olhos, tudo falava pelo meu estado. Mandou, então, que passasse para a sala ao lado e me deitasse na marquesa. Mandou-me que despisse as cuecas. 

Estaquei, incrédula. 

Mandou-me que pusesse as pernas num suportes. Admirada, não obedeci: 'Acho que não percebeu o que eu disse'. Mas sentia-me febril, sem energia e doente. Faltavam-me as forças para me rebelar. Ele disse: 'Percebi bem. Mas este é o protocolo.'. Tentei protestar: 'Estou constipada ou com gripe, só isso'. Ele, seco, médico velho e sem paciência para frescura de menina, zangou-se: 'O médico aqui sou eu. Tem que ser observada e fazer uma lavagem vaginal'. Em condições normais, teria saído porta fora, talvez a correr para apresentar queixa na Ordem. Mas estava sem força, doente, zonzinha de todo. Ainda hesitei, mas até para a hesitação me faltavam as forças. Ele já estava com um reservatório na mão, autoritário: 'Deite-se'. E eu, fraca e doente, deitei-me. Pela primeira e única vez na vida, fizeram-me uma lavagem vaginal. Furiosa com o bode velho, furiosa comigo, mas sem energia para atear a fúria, deixei que a fizesse. Logo a seguir, ainda sem perceber o que me tinha acontecido, levantei-me. Auscultou-me, viu-me à transparência, viu-me a garganta, os ouvidos, prescreveu-me o que entendeu, mandou que me apresentasse lá passados uns dias. Nunca mais. Saí de lá doente e desnorteada. Quando contei ao meu marido, ficou espantado. Também eu. Ao fim de tanto tempo ainda estou: o que foi aquilo? Abuso? Reinação? Método arcaico?

Mas, enfim, coisas esdrúxulas que acontecem na vida de uma mulher. 

Mas passo, então, ao texto Não confio em médicos que nunca examinam do grande Vêncio.

Bom mesmo era o doutor Pecker que colocava as mãos na clientela sem pressa, malícia e asco. Sobretudo, aceitava o pagamento em bandas-de-leitoa. Decorava bulas, sonetos e até “O Navio Negreiro”, de Castro Alves. Tinha cultura e boa memória. Para tratar pedras nos rins, quebrava os rigorosos protocolos científicos ao receitar os caminhos tortuosos de Drummond. Para a contenção dos gêiseres fertilizantes e dos fluidos contaminados por intrépidos treponemas que espocavam das varas, instruía o uso de camisinhas-de-força.

Para evitar o dissabor de um neném não planejado, servia-se aos casais um tira-gosto: azeitona; sim, uma azeitona estrategicamente alocada entre os joelhos da mulher amada. Era batata, ou melhor, era azeitona; desde que não se deixasse cair o caroço na cama. Aliás, azeite alentejano, para amenizar a secura vaginal, fazia parte da régia estratégia para escorregar-enguia-na-loca e temperar o relacionamento durante os bravos verões da menopausa.

Para corrimento, pausa. Para os dias de TPM, recomendava guardar melhor distância. Para frieza sexual, receitava jeitinho mais cobertor de orelha. Para ejaculação precoce, indicava manteiga-de-tartaruga e punhetas com a mão esquerda. Macetes para inzonar. Para garantir plena eficácia contraceptiva, caçava gametas com a mesma gana de quem caçava confusão; instalava, ele próprio, fraco e mirradinho, com o artifício de binóculos e de um cilibrim, minúsculas arapucas e umas tais micro-ratoeiras importadas da França (tinham ratos de sobra em Paris naquela época) para surpreender o verter das picas e capturar espermatozoides no arcabouço da cratera vaginal.

Havia uma compreensível, justificável e natural falta de luz no fim do túnel. Ali, deitado em berço esplêndido, jazia boquiaberto um colo uterino, prestes a engolir novas expectativas de vida. A mãe-do-corpo, como sempre acontecia, urrava. Mulher sofria e sofre. Não restava dúvida ao médico ateu de que as fêmeas da espécie tinham levado imensa desvantagem durante o ato divino da criação.

Padecia também o descrente doutor desses tipos de incongruências filosóficas. Para retesar o desatino da frouxidão crônico-involuntária dos esfíncteres e dos orifícios, deveria o moribundo piscá-los em salvas de trinta vezes, a intervalos de oito horas.

Para a impotência sexual masculina, ovos-de-pata mais os famosos exercícios de levitação do professor Karnal. Para dor de veado, tinturas de arco-íris. Para frieira, beirada de rede. Para batedeiras no peito, repiques com o dedo indicador num portal de madeira para ensinar o coração a bater no ritmo correto.

Para as dúvidas existencialistas, listas de exercícios de matemática. Para transtornos bipolares, uma terceira opinião. Para moléstias mentais do tipo desespero de causa e loucura absoluta, cadeiras elétricas de frente ao mar. Amar. Carecia armar o espírito, no qual ele não cria, com aquelas cálidas cápsulas de claves-de-sol. Mais incongruências.

O tempo passou. Há roupa no varal e doses homeopáticas de devaneio nesse texto em tributo à medicina humanizada. Espero ser bem compreendido. Adveio tecnologia avançada com o uso trivial de caríssimas máquinas-de-tirar-dúvidas nas quais se entra numa extremidade, enquanto o laudo sai noutra. Ganha-se de um lado, perde-se de outro. Eis a vida. Já não se fazem mais médicos como o desprovido doutor Pecker que sumiu engolido por sucuri.

Instruído por Hipócrates, arrancava bala à grito, mandava veia parar de sangrar e cochichava coisas que ninguém entendia enquanto operava milagres num singelíssimo hospital no interior do Brasil. Se eu não soubesse da sua flauta de fé, poderia jurar que se aconselhasse com o próprio Deus enquanto desembaraçava tripas.

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E um dia feliz. 

Força. Saúde. Alegria.

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