terça-feira, junho 09, 2020

Miguel, filho de Mirtes que trabalhava para Sari


Escreve Élida Ramirez, sobre a primeira dama de Tamandaré, Sari Corte Real, que, no outro dia,  tinha manicura em casa a fazer-lhe as nails e se impacientou com o menino Miguel que não parava de chamar pela mãe que, entretanto, tinha ido passear a cadela da patroa:
Tente se colocar no lugar da cearense Mirtes Renata, mãe de Miguel. Reforçarei os maus tratos óbvios porque ‘pensar perturba’ como disse Martin Luther King. Ainda mais sob a ótica do discurso do absurdo daqueles que governam atualmente o país. Cenário de pandemia de Coronavírus. Apenas serviços essenciais devem funcionar. Porém, a empregada doméstica Mirtes precisa trabalhar. Ela ‘poderia’ ficar em casa. A tal liberdade custaria o salário que não seria pago. Não tem com quem deixar o filho, Miguel Silva, de 5 anos. Com a autorização da patroa Sari Corte Real e do patrão e prefeito de Tamandaré, Sérgio Hacker, a mulher pobre e negra sai, diariamente, da segurança do isolamento social com uma criança. Pega dois ônibus lotados, espremida e em pé para dedicar seu dia ao conforto dos outros. Não usa máscara dentro de casa dos patrões. Precisa ter contato com entregadores que não param de chegar. Passeia na rua com o cachorro. 
Sem o direito à proteção, Mirtes pega o novo Covid-19 do patrão. Passa para o filho e para a mãe idosa. Enquanto o os familiares abastados se recuperam na casa de campo — também mantida limpa por outros empregados — Mirtes segue na labuta se arriscando pelo pão. Todos sobrevivem.  Ela lava, passa, cozinha e passeia com o pet, porque ‘bicho também é gente’. Final feliz? 
Em um dia desses, Mirtes prefere não levar Miguel para a rua. Ele fica no apartamento com a patroa Corte Real enquanto a empregada cuida do animal, aparentemente sem nenhuma estimação. Daí, a criança quer atenção. O máximo que consegue é ser desovado, sozinho, em um elevador pela mulher do prefeito. Miguel é pequeno, se perde e cai do nono andar. Morre horas depois no hospital. Acidente?

Diz Eberth Vêncio, sofrendo com isto tudo:
Durante os meus exercícios diários de sobrevivência no caos interior, especulo que as relações interpessoais e a comunicação instantânea, globalizada, estão adoecendo a humanidade em patamares impensáveis. Insanidade mental é uma pandemia obscura. Ansiedade. Depressão. Pânico. Suicídio. Parece que o estilo de vida contemporâneo nos atropela com informações e velocidade. Por consequência, uma régua imaginária nivela, por baixo, a inteligência e a capacidade de discernimento e de indignação de muitos, frente às famigeradas mazelas cotidianas. Aprisionados em redes sociais da web, consumimos informações várias, às vezes relevantes, quase sempre supérfluas, inverídicas, cruéis, carregadas de intolerância e de falta de empatia.   
Há um desconfortável fetichismo pelo mau gosto e pelo mórbido espetáculo de notícias escabrosas que nos chegam pelos telejornais, pelos canais da internet, pelos instrumentos viciantes de Mark Zuckerberg, que testam a nossa capacidade mental para amortecer as tragédias diárias que ribombam em todos os cantos do planeta. O filho da empregada que caiu do nono andar em Recife. O adolescente fuzilado, dentro de casa, por militares no Rio. A transmissão, on time, on demand, do sufocamento, até à morte, de um homem negro, por policiais de Minneapolis. 
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Nos dois casos, trata-se de excertos de textos publicados na Revista Bula. No primeiro caso, do artigo A morte do menino Miguel não é acidente. É crime de negligência! de Élida Ramirez e, no segundo, de O menino que havia em mim pulou de um prédio e voou de Eberth Vêncio

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Um bom dia a todos

2 comentários:

" R y k @ r d o " disse...

Gostei de ler. Sou mais para poesia que para prosa mas não deixe de ler temas interessantes como este.
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Cumprimentos
Um dia feliz

Paulo B disse...

Mas o primeiro texto não é prosa literária ficcional. É verídico.