sexta-feira, junho 12, 2020

Ajustar contas com estátuas ou com filmes antigos -- ou o problema da carneirada




Não apenas continuo sem ver noticiários como a minha cabeça anda por outras paragens. Tempo de decisões, tempo de mudanças. Aquilo que vinha antevendo, talvez desejando, começa a aproximar-se. Mas, como geralmente acontece, nem tudo acontece como se espera e os imprevistos, volta e meia, convergem e tudo se junta e atropela deixando pouco tempo e pouca disponibilidade mental para processar tudo, para avaliar se há margem para algum recuo (ou se tal é desejável) ou se o melhor é não pensar e mergulhar de cabeça. Por norma, sou dada a atirar-me sem pensar duas vezes mas, neste caso, estou em crer que tenho que avaliar bem as decisões, tenho que acautelar algumas situações. Mas tudo a mudar ao mesmo tempo e tudo na sequência de meses de confinamento é uma verdadeira overdose.


Portanto, os dias correm rapidamente e, dentro deles, há vários turbilhões, alguns completamente independentes uns dos outros mas que, por coincidirem no tempo, se influenciam reciprocamente e me deixam exausta. Talvez por tudo isso e talvez por outras coisas ainda, anda a acontecer-me uma coisa nova em mim e da qual já aqui falei: dormir mal. Adormeço mal, acordo a meio da noite e não volto a adormecer rapidamente, acordo cedo, com sono e cansada, e passo o dia a pensar que seria bom se conseguisse dormir um pouco.


Ainda por cima, o dia esteve cinzento, ventoso, frio. Voltei a vestir um casaco. Os meninos também pouco saíram, estava mesmo mau tempo. A minha filha fez umas pulseiras muito bonitas e dá boas ideias. Do lado do meu filho chega-me também apoio, incentivando-me no sentido que eu andava a querer mas que agora, à beira de se concretizar, dada a proporção -- que se agigantou -- me traz apreensiva.

E, quando aqui chego, espreito as notícias e, pelo meio do mais do mesmo, vejo a parvoíce a ganhar terreno, a malta feita carneirada, rebanho de cabeçudos e palermas que berram porque o primeiro da fila berrou, Como sempre, há, depois, os do costume a vestir a asneirada de nobres causas e a insultarem os que não se revêem na carneirada. 
Por exemplo, por eu estar a dizer isto, já sei que o mais certo é que me apareçam os comentários do costume com afirmações estúpidas, acusações ou sugestões alarves. Já no outro dia o disse e volto a dizer: só publico o que revele ter sido escrito por pessoa de bem. Comentários escritos por gente malcriada, embirrante ou estúpida vão rapidamente para o lixo. 

Isto a propósito de agora ir tudo de arrastão, estátuas deitadas a baixo ou vandalizadas e, soube há pouco, até o E tudo o vento levou saíu da lista do HBO. Coisa mais parva.

Gente ou coisas que foram importantes no seu tempo, um tempo em que a consciência das coisas era outra, em grande parte gente que hoje já ninguém sabe bem quem foi, vê-se agora apeada do seu pedestal, atirada às águas, pintalgada, ofendida. Dizem que foram racistas, colonialistas, esclavagistas. Não sei, em parte dos casos não faço ideia nem tenho curiosidade em ir perceber. O que acho é apenas uma coisa: absurdo. Se vamos por aí, apagamos a história, apagamos a memória, transformamos o passado dos países em buracos negros. Gente que se monta a cavalo em ondas mediáticas, que vai para as ruas fazer justiça pelas próprias mãos, gente que concentra a sua energia não a construir um futuro inteligente mas a encarneirar e a vandalizar símbolos do passado é gente que é um atraso de vida. Não gosto de censores póstumos, ajustadores de contas póstumas, vingadores póstumos -- gente que desvia a atenção dos problemas presentes e que se esquece de ajudar a construir o futuro, concentrando esforços a desenterrar a memória de seres de que a história não guardou grande registo ou, pior, a deformar ideias ou a olhar para elas à luz dos tempos presentes. Não gosto nem tenho paciência.


E hoje nada mais tenho a acrescentar. Só se for que é curioso que Espanha tenha desistido de tentar encontrar o crocodilo do Nilo nas águas do Douro e que, às tantas, até já se admita que não é crocodilo, é lontra. Na volta ainda é apenas alguém que se deixou engordar durante o confinamento e que aproveitou para ir banhar-se no rio.

Também posso acrescentar que não consigo imaginar-me a, diariamente, voltar a perder horas no trânsito ou a ficar horas fechada em espaços sem janelas. Pode acontecer que, estupidamente, isso tenha que acontecer. Mas será com angústia e raiva que o viverei por constatar que se estará a desbaratar um capital de aprendizagem que deveria ter acontecido. O pior de tudo é a gente que passa pelas coisas incapaz de aprender as lições que a vida se encarrega de lhes enfiar pelos olhos adentro.

Mas, enfim, já chega. Vou descansar, bem preciso.

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As fotografias acima foram algumas das finalistas do concurso de fotografia The Independent Photographer’s Portrait

Natalie Merchant, de quem já estava com saudades, interpreta Ophelia

E não me perguntem porquê pois não saberia encontrar grandes explicações para a falta de relação que tudo isto tem entre si, nomeadamente, com a cereja em cima do bolo, o Defeat de Kahlil Gibran dito por Shane Morris


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Uma boa sexta-feira!

2 comentários:

" R y k @ r d o " disse...

Se calhar é mais um problema da carneirada. Sim, é mais isso.
Cumprimentos

Paulo B disse...

UJM, mas construir esse futuro implica lidar com asneiras do passado. Quando o próprio ensino da história ainda se mantém numa narrativa floreada, romantizada e heróica, com uma discussão quase nula dos resultados nefastos que também ocorreram, se calhar a construção desse futuro ainda requer uma certa reflexão sobre o passado. Há erros que para não voltarem a ser cometidos devem ser bem identificados.
Por outro lado, note-se que as estátuas não são propriamente história..na sua maioria são iniciativas póstumas, em que certas figuras são escolhidas para serem glorificadas como exemplos da sociedade.
Concordemos que seria muito estranho tolerar iniciativas de implementação de bustos do salaZar por esse país fora, não? Seria isso um mero março histórico ou teria um simbolismo maior que esse?

Quanto ao filme. Bem, aparentemente a decisão não é retirar ou censurar: será colocado na plataforma com uma espécie de prefácio a contextualizar a obra no período histórico. Ora, porque não? É um filme criticado desde muito cedo pelo seu pendor racista. É um filme que deu origem. Ao primeiro Oscar a uma atriz negra. E a uma polémica significativa sobre a cerimónia de atribuição desse Óscar.
Sim, há oportunismo comercial nesta decisão da HBO? Óbvio. Mas... Não é nada ainda assim de ridículo ou censurável parece-me.
A questão do Litlle Britain é diferente, parece-me. É verdade que os autores se têm distanciado da sua criação. É verdade que muitas das rábulas pegam em estereótipos penalizadores, mas .... Não sei. Parece-me aqui realmente exagerado.

Concluindo: não acho que isto seja um debate absurdo. Pelo contrário..nunca foi feito (ou é sistematicamente desvalorizado).

Abraço.

Bom fim-de-semana