terça-feira, março 24, 2020

Trinta minutos para espantar a ausência





Estou hoje, de facto, muito cansada. Estive a trabalhar até agora. Falta-me o tempo em que, antes, numa outra vida, no carro, no trânsito, atravessava a cidade ouvindo música ou entrevistas. Descansava a cabeça. E depois chegava a casa, despia-me, mudava de cenário. E à hora de almoço também mudava de ares e isso, mesmo sendo por vezes muito a correr, parecendo que não, também era um intervalo na minha jornada. Agora não, agora é desde que me levanto quase até que me deito. Non stop. O almoço foi à pressa, o jantar à pressa foi. Muitas videoconferências, muitos telefonemas, muitos mails, muitas aprovações, muitos relatórios para ver. Muita coisa, muitos problemas, muita coisa que dá que pensar. 

E, portanto, à noite, estou a pensar no que hoje ouvi, nas preocupações grandes pelo que aí está, medo por situações de que soube e que não me tranquilizam nada, medo pelo que antecipo que está por vir. A preocupação quando envolta pelo medo tolhem. Esforço-me por pensar que faltam dois meses e tal para que respiremos de alívio. E penso: dois meses e meio passam num instante. Se conseguisse estar dois meses e meio sem saber de notícias talvez nem desse por nada e não me preocupasse. Mas como consegui-lo, logo eu, que preciso de estar junto dos meus, de vê-los, de tê-los junto a mim...?

E o que vem a seguir? Não sei mas vejo uma nuvem negra cada vez mais próxima. 


Mas não quero falar mais nisto. Sei que depois disto, talvez daqui por uns dois ou três anos, tudo isto será passado, motivo de filme, de série de Netflix, de livro, de tese de economia, de finanças, de sociologia. Talvez a Hélia Correia um dia se saia com um livro, poesia da boa, nós feitos cegos esgotados, animais, nós à deriva, tomados pelo medo e pelo abandono. Sei que nessa altura haverá retoma, reconstrução, recomeço. Sei, João, sei que o mundo vai ficar melhor. Não sei durante quanto tempo durará essa nossa ilusão. Mas talvez dure três ou quatros anos, o suficiente para falarmos, com sabedoria, sobre estes confusos tempos em que o anterior sistema implodiu. Haverá gente que descreverá a cratera deixada, e fá-lo-á através de comparações com as hecatombes nucleares, outros, mais inspirados, usarão metáforas, alguns metáforas inspiradas nas quais outros pegarão, papagueando-as até virarem buzzwords. O mundo mudará mas, seja qual a dimensão e a natureza da mudança, sempre os papagaios sobreviverão.

Estou cansada. Tinha aqui na mesinha um copo de água e, cansada que estou, entornei o copo em cima do computador. Sacudi-o logo, aflita não fosse ele avariar-se. Era o que me faltava, estar em teletrabalho sem ter com o que trabalhar. E agora que vejo a água entornada lembro-me que hoje nem fiz um chá. Nunca tal aconteceu. Sempre bebi chás, infusões. Faço misturadas. Parece que não há nada vida que eu consiga consumir plain. Só se for a água. Misturo chá branco com casca de limão, cidreira com casca de laranja, lúcia-lima com gengibre. Coisas assim. Só um que é especial, e que é tão especial que agora nem me lembro do nome, é que bebo puro. Mas hoje não tive tempo, esqueci-me. Devo, pois, ter chegado a esta hora não apenas cansada e desanimada como desidratada.


Tenho um mail, importante para mim, para responder. A ver se consigo. Estou cansada, parece que as palavras não fluem para que cheguem a quem me lê como um ramo de flores do campo, simples, sem giroflés a servir de enfeite. 

Gosto de escrever quando as ideias fervilham em mim e os dedos me levam sem que eu tente saber para onde. Por vezes, é quando estou mais cansada, quando o meu eu consciente se desliga, que eu escrevo de uma maneira que me dá mais prazer, deixando correr o fio das palavras para me ir deixando surpreender pelo que vai aparecendo escrito.


Não bebi chás nem infusões nem li nem ouvi música nem apanhei banhos de sol nem passeei nem fiz fotografias. Nada. Por isso vou ouvir poesia, a ver se me sinto compensada pelo dia que foi. Gosto da voz de Tom Hiddleston, gosto da forma como ele diz poesia.

Ouvir poesia amansa-me, dobra-me, pega-me ao colo. Ouço-o e, ao ouvi-o, o céu fica estrelado sobre mim, o chão floresce sob os meus pés e as flores dobram-se, tanta a cor, as árvores enchem-se de frutos sumarentos, doces e carnudos, o fundo do mar é turquesa e verde cobalto e há conchas de madrepérola que escondem segredos que não quero descobrir, e eu ouço-o e entro pela floresta, ao encontro dos bichos que a habitam e que, ao ver-me, me aceitam e fazem uma roda em minha volta, e uivam, azuis, solitários, perigosos de tão belos e tentadores que são. Ouço-o e fecho os olhos porque, de repente, todos os mistérios e segredos e acasos se juntam e fazem sentido e eu, então, compreendo tudo, a loucura e a estranheza mais absolutas, o sobressalto estético que me dobra, me desarma, me vence.

E talvez nada disto que escrevo faça sentido e, se assim for, é assim que está bem. Em dias assim o melhor é não fazer sentido, apenas ser.


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Pinturas de Lee Krasner
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Um dia feliz
(na medida do possível)

2 comentários:

João Lisboa disse...

"Sei, João, sei"

Se isso a faz sentir-se melhor, força. Eu nunca me dei mal com a outra dieta mental. Só me deu boas surpresas e poucas desilusões.

Paulo B disse...

Olá UJM,

Eu estou como o João. E a UE já deu sinais que vai ser esse o caminho. Se o BCE até está a fazer a sua parte, tenho sérias dúvidas que dá UE venha bom vento, quanto mais bom casamento - https://www.politico.eu/article/eu-finance-minister-deadlock-on-coronavirus-economic-strategy/

Depois de aprovarem um pacote estrondoso que, como reconheceu o Primeiro Ministro, na verdade é só uma flexibilização do uso dos € do envelope financeiro do Portugal 2020, agora a solução passa por dar crédito aos PIGS.
A velha história de 2008: cena 1 - sim, suspendemos as regras dos limites aos défices; cena 2 - ui, estão aqui uns PIGS que fizeram muito défice e pediram muito crédito, vamos punir está malta fechando a torneira do vício; cena 3 - aí estão a morrer? Se venderem os anéis e o ouro lá de casa, dou-vos pão e água. Chegamos a 2020 e vamos repetir o espetáculo do costume. Vai ser bonito.
Bem, a boa notícia (ainda que estatísticamente insignificante), a taxa de crescimento está relativamente contida.
Quinta feira vou ter de ir a um grande hospital, embora um onde não se tratam doentes de CoVid. Vamos lá ver como estão as tropas na frente de batalha.

Abraço!

Paulo B