quinta-feira, janeiro 16, 2020

Como um tigre caminhando na noite






Desconheço-te. Sei apenas que habitas a noite. Tal como eu, sinto que a tua respiração se adensa à medida que a luz se esvai, que os vultos se desenham, que a penumbra te envolve, que a noite avança. É uma respiração morna, suave, sentida. E, acredita, eu sinto-a aqui onde estou.

Tal como acontece comigo, pressinto que os teus passos pelas veredas mal iluminadas nada mais procuram do que o silêncio e a batida longínqua de outro coração.


Se calha os teus caminhos acontecerem à luz do dia e cruzarem-se com os meus, serás para mim um estrangeiro, alguém que também não reconhecerei. E ainda bem. Bichos esquivos como nós devem vigiar-se de longe, adivinhar-se-se apenas pelo cheiro, pelo rasto que as palavras deixam.

Conheço-as bem, as tuas palavras, as pegadas vagarosas que vais deixando pelas margens dos rios, pelos lugares que, em segredo, visitas. Disfarças-te. E eu acho bem. Também eu me disfarço, também eu me oculto. Bichos intangíveis como nós apenas querem ser pressentidos, antevistos apenas em pensamento. 


Durante muito tempo nada sei de ti. É sempre assim. Não faz mal. Sei que andarás nos teus refúgios, procurando a melodia secreta dos rumores da madrugada e das palavras que ainda não encontraram o seu caminho. Mas sei que, mal cheguem as neblinas, tu terás vontade de sentir o frescor dos murmúrios e o toque de um afecto que pressagias. Sairás, então, dos labirintos em que te perdes para vires em silêncio, o bafo inquieto, pela beira do rio, pela beira da minha respiração, para atravessares o tempo e os lonjuras, para procurares um olhar que desconheces mas que sentes pousado em ti. 


Vem. Estou aqui à tua espera. Em silêncio esperarei o imperceptível som dos teus passos, esperarei sentir o calor do teu bafo, esperarei ouvir o bater do teu coração. Depois, antes que perigosamente te aproximes demais, afastar-me-ei. 

Sei que me compreendes: é assim que somos. A nudez ser-nos-ia insuportável pois os disfarces já se colaram à nossa pele. Somos bichos que caminham em silêncio, solitários, espreitando-se de longe, em segredo.

Mas vem na mesma. Aproxima-te. Quero sentir-te. Sinto tanto a tua falta. 

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Julie London vem aqui, de novo, para me embalar com o seu Cry me a river. 
E o texto foi-me ditado pelo tigre que Nitish Madan tão maravilhosamente fotografou.

E agora vou descansar para ver se, não tarda, consigo acordar sem ter que recorrer às técnicas do Mr. Bean.

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E um dia feliz para todos

7 comentários:

Anónimo disse...

Belas fotografias de um dos mais extraordinários felinos, o tigre. Um animal magnífico!
Há uma descrição sobre o medo, de Rudyard Kipling, que um dia li (não me recordo em que livro), quando ele avista um tigre, na selva indiana, embora ainda a alguma distancia, mas onde o escritor não teria hipóteses de lhe escapar se a fera tivesse optado por dirigir-se até ele, o que não veio a suceder, que nunca mais esqueci, tão emotivo, digamos, foi aquele relato.
Uma vez, em turismo pela Índia, quando visitámos um daqueles Parques Nacionais, tivemos a oportunidade de ver um desses espantosos Felídeos, que caminhava solene e majestaticamente, mais adiante. É uma sensação estranha e muito especial avistar-se um animal daqueles, com aquele porte, sabendo bem do que é capaz, tendo em conta a sua força, agilidade e ferocidade, que possuiu.
Após diversos programas relativos à sua protecção, no Continente Asiático, sabe-se hoje que a espécie tem vindo, felizmente, a recuperar bastante o seu número.
Na Ásia é um animal mítico. E respeitado. Ao que me constou, na China, matar um tigre pode dar origem à aplicação de pena de morte.

Anónimo disse...

{ Sheela na gigs & Green Men }

As circunstâncias guiam-nos a exercer de forma diversa o mesmo dom para o ctónio, para o foco nas correntes subterrâneas que animam e unem o que, para outros, são os acasos da vida: Você, fêmea-alfa do seu clã, escrutina os efeitos desse talento; eu, macho solitário, abandono-me às suas causas. Contudo, machos & fêmeas existem para se unir, e dar fruto - Você, pragmática, não esquece o quão amargos podem ser; quanto a mim, ressolto, limito-me a evocar a doçura.

Que seria de FinalFeliz sem o frémito de FurtivaLágrima?

Um Jeito Manso disse...

Olá Anónimo dos Tigres,

Tentarei amanhã responder ao seu comentário pois o adiantado da hora hoje não mo permite.

Obrigada e até amanhã.

Um Jeito Manso disse...

Olá Insolente Anónimo,

Não quero responder-lhe com a brevidade que o adiantado da hora impõe. Fica para amanhã, está bem?

Uma noite descansada.

Anónimo disse...

Claro.

Muito obrigado.

"Sabedoria como efeito secundário da luta do ego contra a decadência."

Um Jeito Manso disse...

Olá Anónimo dos Tigres,

Tem razão. São animais fantásticos, certamente divindades. Ainda tenho para um dia partilhar um vídeo que há tempos me enviou sobre um magnífico felino.

Imagino a fantástica experiência ao estar perto e ver andar um desses animais que tem o porte de um deus. Deve ser de arrepiar, de fazer tocar todas as cordas da emoção... Se eu já tenho uma certa pancada com o lado extraordinário e quase extraterrestre dos felídeos, imagine-se se um dia estiver perto de algum.

E agora fiquei curiosa sobre essa cena que refere do Kipling.

Agradeço o seu testemunho. Gostei de ler o que escreveu.

Um belo sábado!

Um Jeito Manso disse...

Olá Anónimo Insolente,

O que escreve surpreende-me e, por vezes, leva-me a ler várias vezes para tentar encontrar o sentido subjacente do que diz. A cartografia é uma arte e eu não a terei. Contudo, a partir do que vai dizendo e dos presentes que esconde debaixo das palavras, sinto-me tentada a ir desenhando alguns pontos num plano aberto, vago e distante. E esses pontos levam-me a caminhos nem sempre óbvios mas, quase sempre, interessantes.

Gostei dessa associação: Sheela na gigs & Green Men. Como acontece tantas vezes, não conhecia e foi com espanto e agrado que li o seu significado. Tem graça que lhe tenham ocorrido.

E deixe-me que lhe diga que, nem sei bem porquê, ao ouvir algumas das músicas e ao ter prestado atenção às palavras me senti como que comovida.

Gostava de ter inspiração para conseguir responder-lhe de uma maneira mais criativa mas não tenho, só consigo dizer as coisas de uma maneira muito directa: gostei e agradeço.

Um sábado muito bom para si.