terça-feira, novembro 12, 2019

Sopa da pedra com um crime napoleónico e um cisne à procura de uma Leda à mistura





Recomeça a semana e só de pensar no programinha de festas que aí vem já me apetece evadir-me para outros territórios, quiçá para o meio da serra, entre arvoredo e sons da terra e dos ventos, quiçá hibernar num mosteiro nas terras frias, entre granitos, uivos de lobos, voos de águias, cheiro de flor de laranjeiras num pátio onde há, a meio, uma fonte de pedra. 

A manhã foi muito ocupada e a tarde de hoje não foi das piores mas, mais adiante, uns gabinetes a seguir ao meu, a coisa esteve preta. Gritaria, discussões acesas. Fiz de conta que não estava a dar por nada e deixei-me estar na minha, resolvi o que tinha resolver, reuni-me com quem tive que me reunir. E fizemos todos de conta que o elefante não estava ali ao lado. 
Não sei porquê, nos últimos tempos parece que não há conversa em que alguém não fale num elefante no meio da sala. As salas de Lisboa a abarrotarem de tanto elefante, nunca se viu coisa assim. Portanto, por contágio, também digo. Já disse, aliás. 

A meio da tarde, um dos envolvidos na refrega veio, num ápice, ao meu gabinete, fechou a porta, meio a correr e meio em voz baixa relatou o forrobodó. Depois saíu, agitado, avisando que a coisa ia continuar. E continuou. Quando saí, desci ao mesmo tempo que um colega que também fez de conta que não tinha ouvido a berraria que se ouviu toda a santa tarde. Falámos normalmente, ele contou peripécias divertidas e rimos. Temos todos esta camada de indiferença em cima de nós que nos impede de nos importarmos com maçadas alheias. 

Quando entrei no carro, era de noite e estava muito frio e uma grande ventania. Ao abrir o porta-bagagens voou de lá um saco de papel que não faço ideia o que lá estava a fazer. E o meu cabelo andou pelos ares, levitando em todos os sentidos. Já no carro, reparei que as árvores tinham a ramagem na mesma, tal qual o meu cabelo mas em verde. E eu pensei que um dia havia de experimentar uma cabeleira a fingir de ramagem de árvore. Tentei perceber que árvores eram aquelas: creio que jacarandás mas ainda longe de estarem floridos. E pensei que uma cabeleira de jacarandá em flor também haveria de ser bonito.


Estreei um casaco lindo, lindo, feito pela minha mãe. Estava a guardá-lo para o estrear numa cena que aí vem mas hoje não resisti. É uma obra de arte. Cor, cor, cor, um gosto. Contei à minha mãe que o casaco estava a ser um sucesso e ela ficou toda contente. Disse-me que nunca tinha feito nada tão difícil, e não pelo ponto em si mas pela montagem das peças. Eu disse-lhe que era uma obra de geometria e ela concordou. E, então, pensei que assim vestida, com aquele casaquinho lindo, ficaria muito à maneira com uma cabeleira feita de jacarandás floridos.

E vinha a conduzir, a atravessar Lisboa à noite, a ver as árvores a esvoaçarem a sua densa cabeleira, a ouvir uma música boa, nestes pensamentos, quando me ocorreu que só me faltava ter ali ao lado alguém que me fosse a ler um livro. Ou, ao contrário, ir alguém ao volante e eu a ler. Um serviço de taxi mas em que o condutor fosse apreciador de leituras e fizesse o serviço a troco de que alguém, a seu lado, fosse a ler. Parece-me uma boa ideia. Car sharing para gente de boas leituras. 
Já contei algumas vezes, acho eu: quando faço viagens maiores com o meu marido, gosto de levar um livro e ir a ler em voz alta. E ele também gosta de ir a ouvir. Acho um momento bonito de cumplicidade. E não sei se diga cumplicidade ou intimidade.

Mas, nisto do car sharing, o difícil seria convergir no livro a ler. Tenho aqui ao meu lado 'A arte da brevidade', contos de Virginia Woolf. Deve ser bom de ler, de ouvir ler. 
Também não sei se já contei que fico sempre um bocado embaraçada, para não dizer desconfortável, quando alguém, achando que eu sou dada a livros ou cinema, vem, todo contente, perguntar-me se já li dado livro ou se já vi dado filme. Geralmente é sempre tudo na base do mainstream. Daqueles que toda a gente lê ou vê. E eu não. E fico sempre com a sensação que a pessoa fica na dúvida se serei mesmo dada a livros ou a filmes porque nunca li ou vi nada do que me perguntam. E, como digo que não, a pessoa começa a gabar o produto, e o elogio é rasgado, coisa do melhor. E dizem: tem que ler. Ou tem que ver. Vai ver que vai gostar. E eu sinto que fico especada, sem saber como reagir, apenas desejando que a pessoa pare com aquilo. E já tantas vezes isto me aconteceu e ainda não aprendi. Não sei como reagir: ser franca? Não pode ser, poderia parecer que estava a menorizar o gosto da pessoa. Ainda passaria por arrogante. Armar-me em fingida e dizer que sim, que vou seguir o conselho? Não sou capaz. Nestas ocasiões sinto sempre que tenho algumas limitações sociais. 
E isto vinha a propósito de quê? Nem sei.


Ah. Outra coisa.

Lembrei-me agora de uma notícia que li, uma coisa sinistra, sinistra. Mas tudo ali puxa para a comédia. Um filme sinistro mas de gargalhada. Oleg Sokolov, um russo, condecorado, figura ilustre da intelectualidade, investigador e historiador. Gostava de se vestir de Napoleão, o seu ídolo, o seu objecto de grande estudo. Sessenta e tal anos. Apaixonou-se por Anastasia, uma aluna de vinte e poucos, uma jovem linda, que até alinhou na fantasia e vestiu-se à maneira para acompanhar o Napoleão. Viviam juntos. Até que um dia, a semana passada, discutem. E a discussão acaba mal. Dá-lhe tiros. Mata-a. No dia seguinte, há uma festa em sua casa. Mostra-se na maior, entretém os convidados, a rapariga morta na sala ao lado. Não contente com isso, sem saber o que fazer, perturbado, no dia seguinte corta-a aos bocados. E aqui entra o meu espírito de curiosa encartada: como é que um tipo normal consegue cortar uma pessoa aos bocados? Falo por mim: para cortar um frango aos bocados, em especial se for dos grandes, do campo, tenho que fazer uma força.... Faria se fosse uma pessoa (ai, credo!, só de pensar...). Bem, muniu-se de uma serra que, mais tarde, foi encontrada cheia de sangue, em casa, ao pé da cabeça da Anastasia que, vá lá saber-se porquê, também foi separada do corpo. Um pesadelo. Mas, então, não contente com  a habilidade, meteu os braços da rapariga numa mochila, juntamente com a arma, e resolveu ir atirá-los a um rio gelado. Só que, como estava podre de bêbado, ao dar balanço para atirar a mochila, desequilibrou-se e caíu ele à água. Nisto, uma pessoa que passava viu a cena e pediu ajuda. Quando estavam a salvá-lo, descobriram uns braços dentro da mochila. Imagino o susto que apanharam. A sumidade, em estado de total perturbação, contou que tencionava a seguir ir suicidar-se em grande estilo, vestido de Napoleão. Uma maluqueira pegada. Pena é a jovem -- ainda por cima, transformou a paródia em tragédia.


Bem.

Estava agora aqui com uma ideia em mente mas este post está tão sopa de pedra que acho que não comporta bife do lombo, que a ideia tem a ver com um livro que aqui tenho sobre Al Berto. Mas nem pensar. Há que respeitar. E é que nem vinha a propósito.

[Nem vou reler nem tentar captar a essência do que estou para aqui a escrever. Sei que não faz sentido mas, se o comprovo, não posso fazer de conta que não percebo que deveria era apagar tudo e recomeçar. Mas recomeçar com cabeça, tronco e membros (ai, bolas, que agora até parece trocadilho com o triste fim da namorada do Napoleão)]

Portanto, adiante.

Que venham os cisnes e que, por via das dúvidas, as Ledas deste mundo cubram as suas partes mais íntimas. Não é por nada mas é que consta que.


E se há por aí algum empedernido que acha que os cisnes não têm feelings pois que ponha os olhos neste aqui em baixo, uma tendresse viral.

A insólita relação entre um cisne nada franquista e o seu cuidador no El Escorial


Bom, não sei se a poesia ou a mitologia têm cabidela neste contexto mas, qual pedra para rematar a sopa, desculpem que aqui traga Leda e o Cisne, uma cena que já por mais de uma vez me inspirou (por exemplo, aqui).

Este é que o Tom O'Bedlam, um dia que me dê boleia numa noite de Lisboa, os jacarandás em plena revoada, havia de me ler baixinho com esta sua voz grossa e rouca, quase ao ouvido (para me fazer arrepiar).


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As fotografias que usei neste post são de alguém de quem as más línguas poderiam dizer que não bate bem da bola. Mas eu não acho. Chama-se David LaChapelle. O Sì dolce è'l tormento de Monteverdi é muito bem capaz de estar aqui a destoar mas o que é que eu hei-de fazer?

Mil desculpas mas hoje não consigo responder aos comentários: é tarde e tenho que madrugar. Aliás, já devia era estar quase a levantar-me. Li todos, gostei de ler, agradeço. Mas já sabem que não consigo responder a despachar e agora não tenho mesmo tempo para delongas.

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E uma boa terça-feira. E tenham juizinho, ok?
Ponham os olhos aqui na je.

8 comentários:

Paulo B disse...

Por falar em elefantes e por falar em evasões, no meio da sopa da pedra, permita-me a partilha (e a sugestão) - é o que me ocorre, pois terminei a empreitada mesmo agora e vim aqui só dar uma espreitadela antes de viajar, em sonhos, quem sabe se para Manzhouli, não me ocorrendo nada melhor: https://www.imdb.com/title/tt8020896/

PS: tive de partir o filme em 3x, que na sociedade moderna, se um filme de 4h só com paciência de chinês, então evadirmo-nos 4h só mesmo num ato de verdadeira resistência à ditadura do tempo!
https://youtu.be/sjkvX_XHYM4

Boa semana!

El Mucho Bad disse...

A hilárquica seiva que fecunda sonhos, pesadelos, ilusões.

Anónimo disse...

creio que jacarandás mas ainda longe de estarem floridos.

Claro que estão longe de estarem floridos! Lá para Maio.

Um Jeito Manso disse...

Olá Paulo,

Gostei de ver. Os seus gostos são especiais e as suas descobertas surpreendem-me. Tenho a sorte de ter Leitores invulgares que me presenteiam com sugestões de bom gosto.

Obrigada.

Um Jeito Manso disse...

Olá El Mucho Bad (grande nome! touché...)

Faço minhas as minhas palavras no comentário que fiz ao comentário do Paulo.

A Linda Martini eu conhecia, agora do MeShell Ndegeocello nunca tinha ouvido falar. Espantoso.

Mas sabe do que gostei ainda mais? Da palavra hilárquica que desconhecia. Agora que sei o significado, leio o que escreveu e sinto-me quase fascinada. "A hilárquica seiva que fecunda sonhos, pesadelos, ilusões." Gosto mesmo.

Gracias very much, El Mucho Bad.

Um Jeito Manso disse...

Olá Anónimo,

Não sei se percebeu o que eu escrevi. É que não sei se são jacarandás. De noite, a ramagem completamente a voar e sem estarem floridos, pela ramagem esvoaçante, não consegui perceber. Mas sei que, se forem jacarandás, é como escrevi : longe de estarem floridos.

Mas gracias pela observação, na mesma.

:)

Paulo B disse...

Obrigado pelas lisonjas. Mas só para contrariar:

https://youtu.be/DyDfgMOUjCI


:D

PS: não sendo só para contrariar na verdade... pois tem comentadeiros comprovadamente bem mais interessantes! Aliás, esta que aqui deixo também é para o el mucho bad - um bad guy (ou girl) que bem podia meter uns discos aí numa rádio qualquer que eu seria com certeza um ouvinte fiel, tal as sempre excelente escolhas musicais com que a presenteia e a nós, comentadeiros, indiretamente!

Abraço!

Paulo B disse...

PS: o trailer é interessante mas não acho que vislumbre grande coisa do filme. Não sou um especialista, gostei da filmagem, muito pouco habitual (câmara praticamente sempre em movimento, a seguir a personagem, ainda por cima quase sempre se um plano muito próximo e por detrás, aparecendo a envolvente não raras vezes desfocada) mas difícil quando estamos habituados sempre a filmagem dinâmica convencional (e ainda por cima um filme de 4h...). No entanto o que valorizei mesmo foi o olhar sobre a China. Da sua cultura, da sua sociedade, diria até do seu sistema político. E um olhar a esse nível mas que parte do indivíduo.
Temos tendência a avaliar as outras sociedades sob as nossas lentes ocidentais. A China em muitos casos já está bastante ocidentalizada. Mas essa intercepção com a sociedade ancestral chinesa... Com o próprio sistema político.. interessante!
Bem, infelizmente o jovem realizador suicidou-se pouco depois de ter terminado este maravilhoso filme e já não vamos mais contar com este seu olhar interessante sobre a China. Na verdade, a vida.

Abraço!