domingo, novembro 03, 2019

E em volta dos meus passos eu sinto os grandes anjos cujas asas contêm todo o vento dos espaços






Tenho estado a fazer como que uma gostosa cura de sono. Não tanto quanto se calhar precisaria mas, enfim, o possível. E tem sido bom.

Conto.

Na sexta-feira, estava ainda no primeiro sono e já estava a ser acordada. Como habitualmente, para justificar o mau acto, acrescentou quase meia-hora à hora real. Enfim. Desculpou-se: tínhamos muita coisa para fazer. Pronto, desculpei, se calhar era verdade.

Dali seguimos para casa dos meus pais e, daí, para o campo. Era para almoçarmos num restaurante onde vamos às vezes mas, ao ligarmos, fomos informados que estavam repletos até às duas e meia. Tarde demais, nem pensar. Portanto, fizemos uma inflexão e fomos para outro lado. Nunca lá tínhamos ido. As doses eram de oito ou nove euros. Sem pestanejar, pedimos duas doses. Quando vieram duas travessonas nem queríamos acreditar. De facto, ao olhar à volta, em mesas de duas pessoas só vi uma travessa. Na minha, sobrou mais de metade. Na dele, quase metade. Felizmente os restaurantes agora têm caixas para trazermos o que sobra. Portanto, deu para o jantar de ontem e para o de hoje.


Entretanto, ao sairmos, vimos uma seta para o Lidl e, como tínhamos que nos abastecer para o fim de semana e como gosto de ir ao Lidl, fomos. Aproveitei para comprar mais coisas. Os produtos da marca deles são boas e baratas. E, em geral, o que lá têm é bom. Tinha pensado fazer favas com entrecosto mas tinham de tudo menos favas. Portanto, para domingo, trouxe coisas para um cozido à portuguesa em versão light. E para o almoço de sábado trouxe uma cabeça de pescada do Chile. Uma senhora cabeça. Nem vi quanto pesava mas talvez um quilo ou mais, nem sei. Fiz com batata normal, batata doce, cenoura, feijão verde, cebola e ovo. Para ele ficou a parte de posta e para mim a cabeça propriamente dita. Tudo o que seja para rapar espinhas ou ossos é para mim. Os pobres dos gatos ou dos cães que aqui aparecem não têm grande sorte. Dou-lhes os restos mas já pouco têm para depenicar. Belo peixinho. Estava bem bom. Tal como a minha menininha linda, também eu tenho o peixe cozido com batatas e etc como um dos meus pratos preferidos.

Bem, mas falava eu do sono. Ontem à tarde, depois de termos chegado e arrumado as compras, depois de ter feito uma caminhada e feito montes de fotografias, reclinei-me no sofá e, pimbas, desatei a dormir.


Acordei, fomos dar um passeio e, enquanto ele ficou a fazer não sei o quê, voltei para casa e comecei a devorar Bem-vinda a casa, Memórias, um livro num registo autobiográfico de Lucia Berlin. Muito bom. E ontem quase o acabei. Depois de jantar deu-me, outra vez, o sono e dormitei. Escrevi o post sobre O problema dos homens e, pouco depois li um pouco mais e fui dormir. 

Pois bem. Quando acordei, de manhã, pensei que ainda fosse cedo. Pensei: se for para aí umas nove horas ainda tento dormir mais um bocadinho. Como sempre, estava sozinha na cama, certamente desde quase madrugada, e isso explica que estivesse a dormir sem interrupção. Não há lugar do mundo onde consiga pôr o sono em dia como aqui, especialmente quando estamos só os dois. Levantei-me, fui abrir a portada para entrar o ar fresco e ouvir os pássaros. E fui ver as horas. Onze e quarenta e cinco. Olhei várias vezes para confirmar. Por um momento ainda pensei que tinha mudado a hora, que na volta ainda eram dez e tal. Mas depois lembrei-me que isso da mudança da hora já era.


Depois do pequeno almoço, fui caminhar. Estava ele a chegar a casa. Tinha andado nas vidas dele. Curte as neblinas matinais, curte o cheiro das árvores, curte as cores e os sons da manhã ainda imaculada. Diz sempre que não sei o que perco. Mas os meus horários aqui são outros.

E fui, então, andar de novo por entre as árvores, pisando a caruma macia, aspirando os cheiros íntimos da terra, ouvindo os pássaros, sentindo aquele frémito de quase susto quando algum pássaro apanhado de surpresa bate as asas apressadamente, fazendo toda a árvore estremecer até conseguir libertar-se e começar a voar. 

E, tal como ontem, assisti maravilhada a este fenómeno que sempre me surpreende. Da terra rebentam cogumelos como se não houvesse amanhã. Parece um milagre. Uma aparição. Cogumelos de todas as cores, de todos os tamanhos. Por todo o lado. Não têm conta. Impressionante.


Há milhares de pontinhos brancos. Ínfimos, tamanho quase de cabecinhas de alfinete. Ponho-me de joelhos no chão, sinto a terra molhada. E vejo que os pés são fininhos como cabelos transparentes.  Tão perfeitos, tão delicados. Tão efémeros.

Amplio, ponho o flash, fotografo quer com a máquina quer com o telemóvel para enviar à minha mãe.


Outros são castanhos e estão enleados na caruma. Parecem folhas secas. Outros são grandes, redondos, brancos, levantam as pedras afirmando a sua vontade. Outros são elegantes, cinematográficos. Outros são carnudos, tumefactos, húmidos. Outros são enormes, gigantes, rendilhados. Uns têm o pé grosso, outros um pé delgado. Outros levantam a terra e têm ainda folhas, ramos, paus, terra em cima. São fortes apesar de parecerem macios.

Acho-os lindos. Melhor: acho extraordinário este fenómeno de, do nada, desatarem a sair do chão estes seres misteriosos. Tão diversos, tão intrigantes.  Como se explica uma coisa assim?


A minha mãe, como expectável, escreveu: se fossem bons que belo almoço. Depois acrescentou aquilo que, por esta altura, sempre diz: mas não lhes toques, não arrisques, podem ser venenosos. Respondi que alguns estão já com dentadas e que não vejo coelhos ou javalis caídos por perto. Mas que, claro, não ia arriscar. Depois escreveu que há tantos porque há uma grande cama de folhagem húmida

E há. Uma manta macia, molhada, perfumada. Um cheiro a fertilidade, a beleza, a espanto.


E está tudo tão lindo. As cores estão lindas, acobreadas, douradas, os verdes mais verdes, tudo tão harmonioso, tudo tão tranquilo, tudo tão bom.

De manhã, ainda tratei da casa. Varri, limpei o pó, sacudi tapetes. Gosto de ter a casa limpa. Trouxe da Area um óleo perfumado, com um cheiro cítrico e a verbena. Um perfume fresco, suave. Coloquei o frasquinho com os pauzinhos junto à lareira. Mas acho que é suave demais, ainda não dou pelo perfume. Mas o meu marido, antes de se ir deitar, passou por lá e perguntou que cheiro era aquele e que não percebe para que é aquilo. Mas eu percebo: é porque gosto.

Precisava de mais uns dias para dar uma volta aos roupeiros, aos livros, reorganizar, também aqui, os livros. Acaba por andar sempre tudo misturado, brinquedos, livros de crianças, objectos tresmalhados, panteras que aparecem onde antes estavam peças de cerâmica que, por causa dos meninos, subiram para locais mais intangíveis, coisas assim. Mas, ao mesmo tempo, gosto. Para onde me vire há sempre sinais de todos eles e isso é outra fonte de felicidade.


Mas, com o tempo aqui sempre tão contado, fico-me pelo essencial. Limpeza básica. A ver se agora de manhã me vou às teias de aranha que estou agora a ver que subsistem junto aos candeeiros aqui da parede. Uma praga. Apanham-se à larga durante a semana e acham que é tudo delas. tecem, tecem, tecem.

E faltam-me ainda as casas de banho mas só as lavo depois dos banhos que, aqui, são antes de almoço, depois de andarmos nas nossas lides.


O meu marido, entretanto, de tarde, esteve a fazer uma fogueira com ramagens, desbaste de árvores, tojo, mato, restos ainda do verão. Aquele cheiro bom de uma fogueira no campo, aquele fumo bonito, aquela névoa: tudo maravilhoso. Durou até ao entardecer. Gosto muito, parece que me traz sentimentos antigos, bons. Tão apaziguador, uma coisa que provavelmente remonta até raízes ancestrais de que devo ainda guardar memória. 

Repito-me se disser aquilo que já disse tantas vezes: viver o contacto próximo com a natureza enche-me de felicidade. E é tão melhor quanto me dou conta disso, sinto mesmo que estou a viver momentos de felicidade. Desfruto. Devagarinho. Contemplo, toco, aspiro, caminho. Tão bom.


E, entretanto, acabei o livro da Lucia Berlin. Uma vida complicada, a dela. Não sei como há pessoas que conseguem sobreviver sãs de cabeça, mantendo os laços familiares, em circunstâncias tão complexas. A minha filha é fã dela. Foi a minha nora que lhe deu o Manual para mulheres de limpeza e ficou admiradora. Já leu os três dela traduzidos cá. Eu não, só este. Mas agora vou ver se leio outro.

Depois comecei o da raposa da Herta Müller. Só que a luz do fim do dia estava a encantar-me e fui à rua fazer mais fotografias. E a seguir estive a ler parte do Colóquio de Letras dedicado a Correspondências


Antes de jantar, escrevi o post dos medronhos macios e doces e, a seguir ao jantar, surpreendentemente, voltei a adormecer. Um sono, um sono. Parece que, no decurso dos dias, o corpo vai andando, aguentando-se aparentemente bem com as poucas horas de sono, mas, na primeira oportunidade, desforra-se, descansa, recarrega baterias, faz um saudável reset. O que tenho dormido é incrível. Nem consegui responder a mails e acho que nem vou responder a comentários. Estou, outra vez, capaz de ir dormir, o corpo a pedir-em aconchego, caminha boa.


E, enquanto escrevo, ouço o vento lá fora. Sopra com força. É a Amélie. As árvores que guardam a noite não conseguem evitar que as ramagens se inquietem, fustigadas pela ventania. As bolotas caem sobre o telhado e fazem um barulho a que já me habituei. A chuva cai. Gosto de ouvir. São sons bons. Tudo na natureza me deixa encantada. Os deuses que por aqui guardam estes meus espaços têm-me também nos seus braços. E eu deixo-me abraçar, deixo-me embalar.

Há sempre um deus fantástico nas casas
Em que eu vivo, e em volta dos meus passos
Eu sinto os grandes anjos cujas asas
Contêm todo o vento dos espaços.

[Sophia]


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E a todos, homens ou mulheres, com ou sem problemas, desejo um feliz dia de domingo

4 comentários:

JOAQUIM CASTILHO disse...




Tudo aquilo que espalhámos
que vemos,
que sentimos à nossa volta.
Coisas, objectos, sinais do que somos,
do que fomos, do que vivemos
que queremos ter perante nós.
Testemunhos inertes de nós mesmos,
dos lugares que visitámos no tempo.
Rostos, rastos, restos, rumores
que queremos guardar,
nossa memória visível,
no espaço que, dia a dia,
peça a peça, vamos construindo.
O nosso canto, o nosso muro,
a elaboração paciente de nós mesmos,
onde diariamente nos revemos,
onde somos sempre vida e morte
fonte inesgotável do nosso continuar.

com um abraço

Isabel disse...

Como não cheguei a tempo de desejar um bom fim-de-semana in Heaven, desejo-lhe uma boa semana na cidade:))

Que bonitas fotos!

Beijinhos:))

Um Jeito Manso disse...

Joaquim,

Espero que não tenha levado a mal eu não ter agradecido a tempo e horas. Mas aqui estou agora: muito obrigada! Aquece-me o coração ler palavras tão bonitas.

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel,

Nem tem jeito estar aqui, já a 4ª feira nasceu, a agradecer.

Mas estou, de coração.

Obrigada pela sua gentileza e bondade.

Abraço, Isabel, e dias felizes para si.