Pois eu não é tanto se é de língua portuguesa nativa, se é isto, aquilo ou o outro. O feeling, em mim, começa pelo outside. Sou de amores à primeira vista. A intuição em mim é mesmo um shortcut. Se vejo uma capa discreta, se o bom gosto me parece suave, se folheio e me parece que a paginação é equilibrada, se me parece que a prosa flui sem atrapalhação nem floreado, se o tema tem a ver com coisas simples, se, em rápida amostragem, não encontro palavras que me desagradem, pois logo sinto aquela atração pela qual me perco.
E talvez nem tenha usado as melhores palavras pois agora reli o que escrevi e parecem-me motivos fúteis. O que são palavras que não me desagradam? Dito dessa forma nem eu sei responder. Sim, de facto, pensando bem, o que são palavras que não me agradam? Talvez sejam palavras deselegantes, quer pela leviandade da utilização quer pelo exibicionismo dispensável. Talvez. Também não saberia explicar o que são coisas simples pois sei que ao explicar complicaria a ideia.
O que sei é que 'Uma vida inteira' de Robert Seethaler, autor de que nunca antes ouvira falar, me pareceu um livro bom. Capa em cores simples, fotografia antiga, o título numa outra cor, em relevo, bom ao tacto, a lombada na cor do título. Reparo nestas coisas. Ainda fui espreitar quem era o tradutor. Desejei que fosse o Pedro Tamen. Traduções dele garantem a qualidade do livro.
Tenho medo do que um mau tradutor possa fazer a uma boa obra. Tradutores muito tecnicistas que não intuam a musicalidade que o autor tinha na cabeça quando escreveu ou que não adivinhem o sentido implícito e o transponham de forma directa destruindo o rio de ideias que corria por debaixo do texto são como uma máquina de rasto: destroem a beleza e intenção de um autor.
Por isso, não sendo o Pedro Tamen ou outro tradutor que eu conheça, tento sempre medir o pulso ao texto a ver se me soa bem. A tradutora deste livro é Tânia Ganho e, se na altura nada me incomodou, agora que li o livro, não sei se num ou noutro caso não poderia ter procurado palavra mais em harmonia com o espírito do texto -- mas, globalmente, está aprovada, bem aprovada.
E Robert Seethaler aprovadíssimo. Para que se perceba: comecei a ler o livro a meio da tarde e já o li todo.
E só a meio da tarde porque.
No carro, à vinda, estive a ler um compêndio, temas cá muito meus, preocupações minhas, matérias que quero conhecer melhor, coisas do trabalho. E até comentei: ao contrário deste tipo de cenas em que metade do que ali está é déjà-vu, lugares comuns, tentativas de fazer tendência, banalidades, inutilidades -- o que me permite despachar muitas páginas num ápice e chegar ao fim sem ter perdido nada -- aqui é o oposto. É um compacto de cento e tal páginas, páginas densas e grandes, provavelmente A4, em letra miúda e em que cada palavra importa. Tudo relevante, tudo novo, tudo útil. Por isso, cheguei a casa com o compêndio quase todo por ler porque não consegui diagonalizar nem apressar um bocadinho que fosse. Pelo contrário, de vez em quando, parava, lia em voz alta, relia parágrafos transactos. Tão raro. E que se me perdoe o pleonasmo mas a boa qualidade é uma coisa tão boa.
E só a meio da tarde porque.
No carro, à vinda, estive a ler um compêndio, temas cá muito meus, preocupações minhas, matérias que quero conhecer melhor, coisas do trabalho. E até comentei: ao contrário deste tipo de cenas em que metade do que ali está é déjà-vu, lugares comuns, tentativas de fazer tendência, banalidades, inutilidades -- o que me permite despachar muitas páginas num ápice e chegar ao fim sem ter perdido nada -- aqui é o oposto. É um compacto de cento e tal páginas, páginas densas e grandes, provavelmente A4, em letra miúda e em que cada palavra importa. Tudo relevante, tudo novo, tudo útil. Por isso, cheguei a casa com o compêndio quase todo por ler porque não consegui diagonalizar nem apressar um bocadinho que fosse. Pelo contrário, de vez em quando, parava, lia em voz alta, relia parágrafos transactos. Tão raro. E que se me perdoe o pleonasmo mas a boa qualidade é uma coisa tão boa.
Depois, uma vez chegada, fui caminhar pelo campo, fotografar, encantar-me com a beleza de tudo, a luz através das folhas, as cores douradas e rubras, o musgo já a nascer, muito verdinho, muito macio, tudo muito bonito, a terra ainda molhada, os pássaros a saltitar e a voar de árvore em árvore, a cantarem. Falam na língua deles, não vão em modas, não há buzzwords, não há floreados, não há subentendidos desnecessários, não são precisos tradutores ou traidores pelo meio. São eles, a sua joie de vivre, as árvores, a chuva, o sol, o ar puro e a emoção de quem os ouve -- sem nada de permeio.
Fotografei, feliz. De cada vez que passam uns dias sem que aqui esteja regresso cheia de saudades, vejo tudo pela primeira vez, há esta descoberta inaugural que me comove, a vida sem disfarces, em toda a sua infinita e renovável pureza.
Fotografei, feliz. De cada vez que passam uns dias sem que aqui esteja regresso cheia de saudades, vejo tudo pela primeira vez, há esta descoberta inaugural que me comove, a vida sem disfarces, em toda a sua infinita e renovável pureza.
Depois, voltei a casa, peguei no compêndio e, claro, precisada de recarregar baterias como sempre acontece quando chega o fim da semana, adormeci. Poucos minutos tinham decorrido quando a minha filha me enviou uma mensagem. Os meninos estavam no museu e ela, que sabe como gosto de me sentir próxima, enviou-me várias fotografias deles por lá a experimentarem tudo o que podiam. Como a troca de mensagens se prolongou, percebi que não seria possível retomar a sesta. Por isso, fui buscar o livro.
Tirando um pequeno intervalo para um jantar ligeiro e os telefonemas à família, foi de penalti. Tal como quando li os livros do Paolo Gognetti, também aqui me deixei prender com o desenrolar das descrições de uma vida simples. 'A vida inteira' também fala das mudanças das estações, da primavera e da neve, das grandes árvores, de um homem que não precisa de muito, que se senta a contemplar os vales e as montanhas ao longe, que fala pouco, que se apaixonou uma única vez mas se apaixonou muito, uma paixão daquelas que acontecem uma vez na vida, e que vive sem pedir muito em troca.
Sendo um livro assim -- sem truques, sem suspense, sem traições, sem crimes ou cenas tórridas, sem nada nunca visto -- a verdade é que não consegui parar de ler. Sendo um livro assim, dei por mim a ter que desviar os olhos para parar de ler, com lágrimas nos olhos. E, no entanto, o que tinha acontecido para assim me emocionar foi dito numa pequena frase. E o que tinha acontecido não foi nada de especial. Uma pequena frase que apareceu de súbito. Sem adjectivação, sem aparato. Uma frase pequena e simples. E o texto prosseguiu como se nada fosse. Mas a dimensão da emoção que ali estava chegou até mim de uma forma intensa. Penso que seja a isto que se chama literatura.
Sendo um livro assim -- sem truques, sem suspense, sem traições, sem crimes ou cenas tórridas, sem nada nunca visto -- a verdade é que não consegui parar de ler. Sendo um livro assim, dei por mim a ter que desviar os olhos para parar de ler, com lágrimas nos olhos. E, no entanto, o que tinha acontecido para assim me emocionar foi dito numa pequena frase. E o que tinha acontecido não foi nada de especial. Uma pequena frase que apareceu de súbito. Sem adjectivação, sem aparato. Uma frase pequena e simples. E o texto prosseguiu como se nada fosse. Mas a dimensão da emoção que ali estava chegou até mim de uma forma intensa. Penso que seja a isto que se chama literatura.
Ou seja, li o livro todo e fiquei com pena que tivesse acabado. Uma escrita escorreita, sem artifícios, elegante na sua simplicidade, sensível apesar da rudeza da vida do personagem, apesar da sua introversão, apesar de não ser dado a pensamentos profundos. Não sei como se faz um livro assim mas sei que, cada vez mais, é de livros assim que eu mais gosto.
E a seguir apeteceu-me deixar-me ficar a ver televisão, a olhar para ontem, a curtir a sensação que me ficou, a deixar que a leitura assentasse. Só pensava: tão bom.
E agora aqui estou. Como sempre, mesmo quando o dia é tranquilo, arranjo maneira de ficar a escrever até às tantas da noite.
Ah, é verdade. Só mais uma coisa. Deixem que vos mostre.
Quando estava a andar no campo, aqui in heaven, uma aragem fria, a echarpe que me protegia o colo esvoaçou e eu achei o movimento gracioso e fotografei-a em plena ondulação. Mas como a fotografia não ficou nítida, debrucei-me sobre o alecrim e pousei-a para a fotografar em sossego. A fotografia que aqui vêem acima.
Comprei esta echarpe aos vendedores de Lagos, terra que tenho junto ao coração, naquelas barraquinhas junto ao braço de mar que vai até à marina. Gostei da cor, do tecido, das florzinhas, da harmonia do conjunto. Distraída como sou não reparei nem nas flores em si, nem nos dizeres, só mesmo nessa harmonia. Já a usei alguns dias desta semana, ao fim do dia quando fui caminhar, e hoje todo o dia. Tinha-a hoje, de manhã, quando estive em casa da minha mãe e lembro-me que estive a brincar com ela, a enrolá-la em volta das mãos, a sentir a macieza do tecido. Mas só quando a fotografei reparei que tem as flores aqui do campo: alfazema, orégãos, rosmaninho, tomilho. E até tem esses nomes escritos. E eu, com ela em volta do meu pescoço, e não tinha reparado.
Quantas mais coisas, junto a mim, eu não vejo? Devem ser quase todas. E, no entanto, que bom ter tantas coisas para descobrir. Que contente fiquei ao ver que a echarpe tem desenhadas as florzinhas do campo de que eu tanto gosto. Há tantas pequenas coisas que me deixam contente. Se calhar pode dizer-se que sou uma pessoa fácil de contentar. Ou, mais simplesmente, uma pessoa fácil. Ou simples. Uma pessoa simples.
Acho que sim, acho que é isso. E, se não for, olha, paciência.
E a seguir apeteceu-me deixar-me ficar a ver televisão, a olhar para ontem, a curtir a sensação que me ficou, a deixar que a leitura assentasse. Só pensava: tão bom.
E agora aqui estou. Como sempre, mesmo quando o dia é tranquilo, arranjo maneira de ficar a escrever até às tantas da noite.
Ah, é verdade. Só mais uma coisa. Deixem que vos mostre.
Quando estava a andar no campo, aqui in heaven, uma aragem fria, a echarpe que me protegia o colo esvoaçou e eu achei o movimento gracioso e fotografei-a em plena ondulação. Mas como a fotografia não ficou nítida, debrucei-me sobre o alecrim e pousei-a para a fotografar em sossego. A fotografia que aqui vêem acima.
Comprei esta echarpe aos vendedores de Lagos, terra que tenho junto ao coração, naquelas barraquinhas junto ao braço de mar que vai até à marina. Gostei da cor, do tecido, das florzinhas, da harmonia do conjunto. Distraída como sou não reparei nem nas flores em si, nem nos dizeres, só mesmo nessa harmonia. Já a usei alguns dias desta semana, ao fim do dia quando fui caminhar, e hoje todo o dia. Tinha-a hoje, de manhã, quando estive em casa da minha mãe e lembro-me que estive a brincar com ela, a enrolá-la em volta das mãos, a sentir a macieza do tecido. Mas só quando a fotografei reparei que tem as flores aqui do campo: alfazema, orégãos, rosmaninho, tomilho. E até tem esses nomes escritos. E eu, com ela em volta do meu pescoço, e não tinha reparado.
Quantas mais coisas, junto a mim, eu não vejo? Devem ser quase todas. E, no entanto, que bom ter tantas coisas para descobrir. Que contente fiquei ao ver que a echarpe tem desenhadas as florzinhas do campo de que eu tanto gosto. Há tantas pequenas coisas que me deixam contente. Se calhar pode dizer-se que sou uma pessoa fácil de contentar. Ou, mais simplesmente, uma pessoa fácil. Ou simples. Uma pessoa simples.
Acho que sim, acho que é isso. E, se não for, olha, paciência.
Desejo-vos um belo dia de domingo.
Be happy.
2 comentários:
O oposto, portanto, ali do Xikre ;}
Obrigada e um bom domingo para si e os seus
GG
Gostei imenso das fotos! E fiquei curiosa quanto ao livro. Também gosto de livros assim. Vou ver se o encontro.
Beijinhos e boa semana:))
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