sábado, outubro 19, 2019

Não fui capaz de comer o amor-perfeito




À minha frente estava um inglês. Por detrás dele estava a melhor vista de Lisboa quando avistada de dentro de Lisboa. Lisboa e rio e o lado de lá. Um daqueles cenários tão maravilhosos que uma pessoa poderia ficar um dia inteiro a olhá-lo. Talvez a ouvir música, música muito a meu gosto. Ou alguém a tocar piano num canto, sem que eu visse onde. 

À entrada, reparei numas jarras grandes, de vidro, quadrangulares, com pedras brancas no fundo, e água e flores amarelas muito bonitas. Flores tão lindas. Pensei: não podem ser verdadeiras. Não há flores amarelas tão exóticas, tão grandes, tão exuberantes. Então, discretamente, enquanto os outros falavam da vista e diziam olha ali o castelo, olha ali a basílica, olha ali o passeio junto ao rio, eu passei a mão nas pétalas. E eram verdadeiras. Tive vontade de tirar uma flor, de ficar com ela, trazer para casa, pousar na mesa. Mas o momento não era para frescuras. Disfarcei, escondi a alegria de ter descoberto que a natureza é capaz de coisas tão raras e que a beleza é infinita e inesperada.

Como não podia deixar de ser, falámos do Brexit. Ele ainda não quer acreditar que isso vai acontecer. Contou uma coisa que se passou num lugar, uma experiência social, em que as pessoas votaram numa coisa contrária aos seus interesses e, na verdade, sem saberem em que é que estavam a votar e tudo porque alguém os manipulou, acicatando as pessoas contra uma coisa de que não gostavam e embrulhando a outra coisa nessa tal que foi usada como engodo. Eu disse que por vezes tudo parece uma anedota: as decisões estúpidas que as pessoas tomam, a gente estúpida que as pessoas elegem, o rumo estúpido que as coisas levam. E ele disse que até tem vergonha. E eu compreendi e não disse mais nada pois não quis envergonhar um inglês com um accent tão british, todo ele tão gentleman.

Do que comi nem vou aqui falar pois foi bom de mais. Mas posso dizer que, para sobremesa, a tarte não era só boa, era também linda. Tinha em cima não apenas umas bagas pequeninas, lindas como enfeite de natal, como um amor-perfeito pequenino. E o amor-perfeito era amarelo fulgurante e roxo de veludo. E era tão lindo que não consegui comer. Cometo heresias a toda a hora mas comer uma flor tão linda é heresia para lá de violenta, do lado de lá da linha vermelha que não ouso transpor. Disseram, coma, é bom. Mas nem pensar. Disse que não com a cabeça e olhei para a cidade grande, vasta, estendendo-se ao longo do rio. No pratinho ficou um risquinho sólido de chocolate, e ficou porque estava pregado ao prato, e a florzinha que se salvou por ser tão linda.

Depois das despedidas fui para o parque subterrâneo. E aqui acaba a poesia e começa a comédia. Mas como tudo tem vários lados, para mim foi comédia mas para a outra pessoa envolvida foi um sufoco, um drama.

Mas já lá vou.

Agora antes.

Horas antes, quando entrei, depois de passar a cancela e percebendo que o piso estava cheio, dirigi-me para a descida para o piso inferior. A faixa livre tinha sinal de proibido e na outra faixa vinha uma lady a subir dentro do seu formoso bólide. Pensei: tinha que ser, enganei-me, enfiei-me no lugar onde só se sobe. Então comecei a fazer marcha atrás mas, como todos os parque novos nesta cidade, é tudo feito para carrinhos pequenos ou para ilusionistas capazes de encolher os carros. Então, pensei: estou frita. E como estava apenas a pensar não foi frita que pensei. Mas pensei: tenho que conseguir. E lá comecei a tentar fazer uma manobra impossível até porque já tinha outro carro atrás. Nisto ouvi alguém a bater no vidro. Era um senhor com ar aflito. Abri a janela. E ele: onde é que vai? não consegue fazer marcha atrás. E eu: mas como é que vou para o -2? Aqui é proibido. E ele: Mas a senhora vai bem, aquela que vem a subir é que vem na faixa errada, enfiou-se em sentido proibido. Então foi quase a correr ter com ela. E ela muito admirada, como se estivesse tudo maluco, lá fez uma manobra também arriscada, saltando para a faixa do lado e eu lá consegui descer pela faixa já desobstruída.

Pois bem. Agora, então, à tarde.

Quando vinha a conduzir no parque para sair, apareceu à minha frente, vindo do -3, um mercedes antigo. Só que, em vez de virar logo, avançou até a um ponto em que ficou sem espaço para curvar, entalado entre dois pilares. Fazia marcha atrás e roçava atrás, chegava à frente e batia à frente. Não tinha espaço e notoriamente estava enervado. Saí do carro para perceber se havia margem. Não. Só batendo ainda mais. Ao princípio tinha pensado: Que aflição. Podia ser eu. Deve ser uma mulher. Mas não, era um homem. Ao seu lado, um rapaz. O rapaz também saíu. O homem pediu para ele tentar. O rapaz não queria. Disse: o carro é teu, não quero dar ainda mais cabo dele. Atrás do meu carro, parou outro carro e saíu de lá uma mulher. Perguntou-me: Mas o que é que se passa? Eu disse: Encravou o carro. Agora está ali entalado. Ela deu uma gargalhada: É uma mulher, certo? E eu: Pois, também pensei. Mas não, é um homem. E ela riu ainda mais: Mas não sabe conduzir, não? Como é que ele fez aquela merda? E foi, resoluta, ver se dava algum palpite. Mas voltou para trás e disse: Não tem solução, o carro é grande demais, só se lhe perder o amor. Entretanto, o rapaz passou para o lado do condutor. O condutor estava num estado de nervos de dar dó. Ajudou o rapaz. Mandou-o recuar contra um pilar. O som da lata a bater. O rapaz ganhou uns centímetros para curvar. Depois mandou-o curvar na direcção do outro e ouviu-se o carro a raspar violentamente no pilar. Ao fim de um bocado, lá conseguiu. Trocaram de lugares e seguiram e eu segui atrás deles e a outra mulher atrás de mim. Com isto atrasei-me. Mas não me importei. Soube-me bem estar ali sem fazer nada, aqueles minutos num parque subterrâneo, apenas à espera. Ao princípio pensei que provavelmente só com um guindaste para o içar e que isso poderia durar horas. E não me importei.


Também posso recuar outra vez a umas horas antes, a quando estacionei e, como era cedo, resolvi ir andar a pé. De dia, num dia útil, não costumo andar por ali a pé. E fiquei muito admirada. Street style. Fashion da boa. Tanta gente tão moderna, tão bem vestida, tão inusual. Parecia que estava na proximidade da Vogue, da Vanity Fair, nos boulevards elegantes de Paris. Há tantos mundos dentro do nosso mundo e o que conhecemos é nada. Quando cheguei ao meu destino, cruzei-me com uma cena de filme e era tudo filme, o cenário, grandes espelhos, grandes candeeeiros, um luxo, até as pessoas eram de filme. Pensei que a pessoa que não pertencia ali era aquela mulher que eu via no espelho e que me levava a mim escondida dentro dela, uma que gosta de andar pelo meio do mato, a pisar caruma, a andar por entre os pinheiros perfumados a apanhar pinhas para a lareira, a fotografar as folhas douradas com que o outono embeleza os meus dias in heaven.


Ou seja: não consigo resumir o meu dia e, de boa acção, acho que a única digna de registo foi não ter canibalizado o inocente amor-perfeito.

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Obtive a fotografia de Lisboa em 20 locais de interesse numa visita a Lisboa

As duas últimas foram feitas in heaven.

Espero que tenham vindo pela mão de Monteverdi. Pur ti miro, Pur ti godo

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A todos desejo um sábado à maneira

5 comentários:

Lucília disse...

Ai os parques de estacionamento..
Uma noite destas,eu aos comandos, o marido fora de sinaleiro, ele dizia que cabia eu que não mas já um bocadinho alto (não viamos nenhuma alma por ali) e aquilo fazia eco -aparece uma criatura e nós naquilo.Silenciámos o raio da carrinha encolheu e coube e desatamos a rir com a nossa peixeirada.

Anónimo disse...

Apenas por curiosidade, a flor amor perfeito é stiefmütterchen, na tradução para alemão...
Um bom fim de semana!

Isabel disse...

Quando comecei a conduzir, aconteceu-me uma situação parecida, por pura inexperiência, nas ruas do castelo, que são estreitas (aqui em Castelo Branco). Estava num impasse. Em frente não podia seguir que a rua estava em obras e tinha um enorme buraco. Não podia recuar, porque o carro estava de tal maneira embicado, que se recuasse batia num carro estacionado. Virar para a esquerda, que sempre fora o meu objectivo, destruir-me-ia o carro todo, pois estava demasiado perto da parede. Saí do carro, com a minha irmã que ia comigo, sem sabermos o que fazer, já a consumir-me por dentro, a ver o meu carrinho todo destruído...Então aconteceu uma coisa, que eu sei que algumas pessoas nem acreditam (já contei isto imensas vezes): quatro homens que por ali andavam, das obras ou nem sei vindos de onde, levantaram um pouco o carro e posicionaram-no de forma a poder virar. Foi o suficiente para virar e sair dali feliz e agradecida e a pedir a Deus que desse tudo de bom àqueles simpáticos senhores!
Isto aconteceu há uns 15 ou 16 anos, com um Peugeot 206, que ainda é o carro que tenho.

Beijinhos e um bom fim-de-semana:))

(Eu também não comeria a flor!)

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Nunca me tramei a esse ponto, mas já tive de fazer manobras milimétricas a rondar de mais de 10 movimentos.
Por acaso foi coisa em que fui treinado foi a fazer manobras a espelhos, a escola de condução tinha umas garagens liliputianas e cheias de tralha, por duas vezes a aula foi terminada com o estacionamento do carro na garagem.
Mas realmente há parques de estacionamento que parecem ser feitos mesmo só para Smarts ou Fiat 500.

Um belo fim-de-semana.

Anónimo disse...

Que interessante em alemão essa raiz da flor "amor-perfeito" com a palavra mãe.