terça-feira, outubro 22, 2019

Um problema chamado livros





O que, não há muito, era uma arrumação de dar gosto, cada livro em seu devido sítio, tudo na formatura, é agora já um desalinho, uma tropa fandanga, cada um para seu lado.


Tento ainda manter algum decoro mas é tentativa vã. Há uma pequena estante que está encostado à lombada de uma estante alta onde está parte da poesia portuguesa. Parte. Era para ser a estante da poesia. Depois percebi que os turistas tinham que ficar de fora.
Aliás agora ando com um problema. No outro dia enviaram-me fotografia de uma página de Homero onde alguém chegava como chega a noite. Gostei. Chegar como chega a noite é bonito. Tentei achar o meu para perceber se era a mesma tradução que tenho. Se era do Frederico Lourenço por quem sou tão assanhadamente céptica.  Corri tudo. Uma odisseia. Nada. Nem esse nem nenhum dos outros. Não sei em que gruta se enfiaram, não sei de que ninfas são os braços que os prenderam. Desapareceram. Os do Éluard e outros já os descobri. Ou seja, os poetas não portugueses também não devem ter cabido no espaço que lhes estava destinado e, portanto, um lote deles deve ter procurado outras ilhas, outros mares. E por aí devem andar enquanto eu, fraca penélope, por aqui vou tecendo estas páginas.

Mas mesmo os portugas não tiveram todos lugar na mesma estante, na alta. Pensei: saltam os prolixos. E, assim sendo, Sophia, Maria Teresa Horta, Vasco Graça Moura, Manuel António Pina, António Ramos Rosa, Eugénio de Andrade -- e certamente outros mais -- foram veranear para a estante larga dos portugueses proseadores que está no escritório. Claro que dessa tiveram que saltar também uns quantos, os que são espaçosos que, por isso, tiveram que saltar para a estante do hall dos quartos: Aquilino, Manuel Torga, Camilo, Ferreira de Castro, etc.

Bem. Só de gps.


Mas ia eu a dizer que em cima dessa pequena estante fui fazendo uma pilha, por segurança amparada à lombada da estante dos poetas. Os do meu marido não, esses foram formando uma pilha sobre a estante baixa e comprida que está ali do outro lado. Mas ele é moderado pelo que a pilha dele nunca cresce muito (e deixa-me cá reler não vá distrair-me e deixar o h voar; ok, confere). A minha, em contrapartida, cresce à maluca pelo que não era de admirar que um dia acontecesse o que aconteceu: desmoronou-se. Portanto, para não desafiar demais as leis da gravidade, desmobilizei alguns. Em cima de uma cadeira das que rodeiam a mesa redonda, está agora uma pequena torre com grandes e pesados. Assim, algo aliviada, a outra, que continuou a crescer, quando voltar a cair talvez não cause abalos com richter muito elevado.

Entretanto, por via das dúvidas, o braço do sofá em que estou também já tem uma boa teca. No outro dia peguei na máquina e fotografei alguns que estavam ao meu lado, incluindo um do meu marido que, por algum motivo certamente inconfessável, me apareceu aqui no maior concubinato com os meus.


E, portanto, para concluir: a coisa voltou, pois, a sair dos eixos. Ainda estou na fase em que tento disfarçar para não parecer que me deixei outra vez cair no vício. Mas já ando naquela de pensar que tenho que me segurar na base de um dia de cada vez. Afastar-me dos sítios onde se trafica. Não olhar. Passar ao largo. Não lhes sentir o cheiro. Festejar os dias em que não cedo.

Enquanto escrevo, olho dois que estão aqui ao meu lado. Passo a mão na pele da Lucia Berlin. Macia. Bela capa. E bonita, ela. Bem-vinda a casa. Espreito as fotografias. Espreito as cartas. Vontade de entrar nas suas intimidades. Depois passo a mão na raposa de Herta Müller. Gosto de raposas. Cativam. São silenciosas, subtis, sedutoras. Penso: enquanto não ler estes dois, não compro mais. 

Mas não respondo por mim. Tantas vezes já o pensei e depois, fraca, dependente, soçobro.


Penso também: se, em vez de estar para aqui a deitar conversa fora, estivesse a consumir, via-me livre deste lastro insurrecto que por aqui anda no laré, uns em cadeiras, outros em sofás, outros em pilhinha equilibrista, e, uma vez lidos, poderia arrumá-los, direitinhos, alfabeticamente ordenados. Seria bom. Dar-me-ia a sensação de ser moderada, arrumada, dona de casa exemplar. Até me imagino: ia para o cadeirão de leitura que está no escritório e colocava os óculos para ver ao perto que nunca usei. Aliás, de ver ao perto não. Progressivos. Se calhar, se me pusesse sossegada, compenetrada, uma senhora, acabava por me habituar aos óculos. Um horror aqueles óculos. Nunca mais lhes toquei. Só de pensar naquela sensação. Parece que ficava almareada. Nem pensar voltar a experimentar. Embora, com certeza, se conseguisse, deixava de ouvir os remoques do meu marido sempre a picar por os óculos não saírem de dentro da caixa, ali dentro da taça em cima da mesa redonda.

Mas, confesso, por vezes sinto falta. Continuo a ler sem óculos mas ao fim de várias páginas, em especial se a luz não é boa, já começo a sentir que os olhos precisam de uma certa distância. Mas, pronto, é um caso por resolver. O meu marido diz: toda a gente se habitua, tem é que tentar; mas tu não, não estás para isso. E eu, ouvindo isso, fico aborrecida, fico a pensar que ele deve ter razão, que, se calhar, se me habituasse, afeiçoava-me mais à leitura em vez de gastar o tempo nisto, a escrever à toa.


Mas isto vinha a propósito já nem sei de quê.

Ah, já sei. A bagunça que daqui a nada está para aqui armada, livros por todo o lado como antes da reorganização que tão feliz me deixou. E esta tristeza que sempre sinto quando assumo que sei que não vou conseguir ler tudo o que, quando comprei, me pareceu imprescindível e que, uma vez aqui em casa, se escapa por entre os dias, escondendo-se de mim nos esparsos momentos em que podiam estar nas minhas mãos.

Penso: um dia que tenha tempo, fixo um horário, estabeleço uma rotina. Todos os dias, das quatro às cinco da tarde, reservo uma hora para a leitura. Mas sei que, logo no primeiro dia, falharei e que o precedente dará o pretexto de que a minha indisciplina congénita se iria servir. Não sei como é que as pessoas normais fazem. Arrumam logo na estante, no local certo, os livros ainda não lidos? Não é certo e sabido que, uma vez inseridos na ordem, se diluem no que nunca mais despertará vontade de ser lido?


E pronto. Calo-me já.

Repesquei para aqui algumas fotografias que, no outro dia, fiz à bonecada, sacra e profana, que tenho na estante dos portugueses (de alguns portugueses, como expliquei). Não dá para mostrar as medusas ou as fadinhas ou uma bola de vidro com flores a sério dentro porque o texto já não suporta mais enfeites.

E, assim sendo, com vossa licença, vou andando. Vinha para falar do Brexit e de outras tristezas mas deixei-me para aqui ficar nesta conversa e agora já não me apetece.

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Um dia bonito para si.

Saúde, alegria e boas leituras.

8 comentários:

Gina disse...

De boas leituras pode ser o seu blogue. Gostei deste post, e muito.

Tenha uma terça-feira das boas, UJM.

Anónimo disse...

Nem toda a gente se habitua aos progressivos. Mas há quem use dois pares: uns para ver ao perto, outros ao longe. Há ainda quem tenha a média distância. Conheci uma senhora que usava os três ao mesmo tempo, todos em cima da cara e ia-os mexendo para cima e para baixo consoante aquele de que precisasse. Importante é estar confortável: esforçar a vista para ler é que cansa a cabeça e isso torna a leitura mais maçadora que agradável - algo definitivamente a evitar.
Se gosta de Herta Muller tem de ler 'O rei faz vénia e mata' que é sobre palavras. Um must.
Abraço,
JV

Isabel disse...

Vi-me retratada, com uma excepção: não consigo ler sem óculos, já há uma boa dezena de anos. Já não consigo.
Tenho plena consciência que esta doença dos livros não tem cura. Paciência!


Adorei os seus Santos Antónios. Tão giros! Também tenho uma pequena colecção.

Beijinhos e uma boa semana:))

JOAQUIM CASTILHO disse...

ESTANTE

Livros, que alguma vez li,
que espero vir a ler
que talvez nunca chegue a ler
repousam lentos, acomodados,
adormecidos, na minha estante.
Pedaços do que por mim passou
que em mim fica e se aquieta.
Resta em mim uma impressão fluida
um rasto de prazer ou de indiferença,
um vago sentimento de posse.
Livros, discos, vídeos,
que guardei, que vi, que ouvi,
que li, que senti.
Tudo faz parte de mim e se tornou meu:
palavras, sons, imagens
que me construíram
que me transformaram,
livros, discos, vídeos, que sou eu também.
O que sou, o que fui
ou o que julgo,
um dia, ter conseguido ser.

Um abraço
JOAQUIM

Um Jeito Manso disse...

Olá Gina, criativa, inspirada Gina,

Obrigada. Simpáticas e generosas palavras logo no início do meu dia.

Claro que nada que se compare com o seu incomparável blogue, uma fonte de surpresas e uma visão inovadora da vida de todos os dias.

Volto a dizer, Gina: haja quem, das artes, repare em si porque temos artista!

E uma quarta-feira das muito boas para si, Gina Geia.

Um Jeito Manso disse...

Olá JV

Sabe o que é com os meus olhos? Sou míope mas com dioptrias diferentes em cada olho, não muito mas, ainda assim, não vejo bem ao longe embora, com a idade, cada vez veja melhor ao longe. A vista cansada é o oposto. Portanto, se ponho óculos não progressivos para ver ao perto, vejo bem quando leio. Mas, se olho ao longe, não vejo nada de nada. Para isso, seria bom os progressivos pois para o perto tratam da vista cansada e ao longe corrigem a miopia. O pior e a transição. Quando passo de uma para a outra é um desatino. Dizem que tenho que aprender a ter a cabeça numa certa posição para posicionar os olhos da maneira certa quando é para olhar ao perto e de outra para olhar ao longe. Pode ser. Mas não tenho paciência para passar por aquela sensação, até parece que fico quase nauseada.

Quanto ao livro, sabe lá, agora não descanso enquanto não lhe puser as mãos. Com a vida apertada com que ando mas, pronto, lá terá mesmo que ser. Gosto da escrita dela. Como não?

Abraço, JV!

Um Jeito Manso disse...

Olá Joaquim

Nem mais. Tal e qual. Disse nas poucas palavras do poema o que eu levo um ror delas a tentar e sem o conseguir. A poesia é a escrita destilada, não é?

Obrigada! Voltámos a ter Poeta! Tão bom.

Dias felizes.

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel,

Sabe uma coisa? No outro dia queria ler os dizeres de uma embalagem pequena que aqui tinha. Palavrinhas liliputeanas. Então sabe o que fiz. Fui buscar uma lupa e pus-me a ler. E pensei: bolas, deve ser a isto que se chama bater no fundo, para ler já só de lupa.

No dia seguinte, quis pregar um botão e não encontrei uma agulha que tem um buraco comprido. Só encontrei uma agulha pequena, com um buraquinho microscópico. Nem queira saber: não conseguia enfiar de maneira nenhuma. Então pensei: só de lupa. Mas como é que se segura na lupa e ao mesmo tempo com a agulha numa mão e a linha na outra? Ridículo. Fiz uma ginástica ridícula e tive que desistir. Não consegui.

Quanto aos livros, é isto: a nossa sina.

Beijinhos, Chabeli!